sábado, dezembro 25, 2004

O bárbaro Denys Arcand...

Tive contato pela primeira vez com a obra de Arcand relativamente por acaso. Lia a revista Veja quando vi o título de um de seus filmes, "Declínio do Império Americano". Como bom pseudo-anarquista-antiamericanista fui sugado por aquela matéria, mais pelo nome do filme do que por seu conteúdo (até então desconhecido para mim). Passei a procurar o filme de locadora em locadora mas não foi fácil encontrá-lo. Havia somente uma cópia em uma locadora (eu procurei em pelo menos 6)e como o filme é de 1986 esta já estava em péssimo estado de conservação. Mas assisti assim mesmo. Foi fantástico. Tive uma soma de sensações que iam desde fascinação pela linguagem e modo de filmagem (extremamente sutil), até um medo quase paranóico de minha ignorância. A construção dos personagens deliciosamente caricatos é fenomenal (algo raro, não acham?). Passei a indicar o filme sem maiores pretensões. Foi quando no Natal de 2003, no quarto do hotel em São Paulo, passei os olhos pelo guia de cinema que acompanhava a Folha de São Paulo daquela semana. Li a sinopse e vi que tratava-se de uma continuação daquele filme que eu vira pouco tempo antes. Corri para o Espaço Unibanco da rua Augusta.
Se um cético pudesse usar a palavra "magia" sem medo, aquela teria sido a ocasião perfeita. A lucidez é esbanjada sem arrogância ou prepotência. Em resumo (o que deveria ser proibido para filmes como esse), o filme conta a história de Remy (agora 18 anos mais velho que no primeiro filme) que se vê com um câncer em rápido crescimento. Então, seus amigos do primeiro filme vão até Montreal encontrá-lo. O que se segue é talvez o mais lúcido e emocionante espetáculo de humanidade desde "Cinema Paradiso" (cada um à sua maneira). Personagens fantástico se cruzam em cenas cheias de recados que nos fazem perceber que nossa sociedade vive sim uma profunda crise de identidade, mas que no final das contas somos realmente humanos e racionais, ainda quando tomados pela emoção. Uma verdadeira ode à humanidade. Confesso que saí do cinema com o olho inchado e bastante desnorteado (hã? Rua Augusta?! Onde?), mas como seria bom que todos os "desnorteios" fossem como aquele. O filme nos enche de esperança ao mesmo tempo que levanta profundas questões sociológicas sobre o comportamento da sociedade moderna e seus dogmas. Prestem atenção ao diálogo do filho do Rémy com o policial dentro do carro, é emocionante.

Lembrem-se do Warhol...

Lembram do Andy Warhol? Se não, vocês devem ao menos se lembrar daquela imagem da Marilyn Monroe repetida varias vezes em um único quadro e com cores diferentes em cada frame…Pois é, trata-se de uma obra deste célebre artista que também imortalizou, entre outras coisas, a imagem da lata de sopa Campbell’s. Em que pese a existência de vários críticos do movimento da chamada Pop Art, é sabido que Warhol, este americano de Pittsburgh e seus contemporâneos – Liechtenstein, Wesselmann, entre outros – revolucionaram o mundo artístico da segunda metade do século XX, chocando e maravilhando um público quase sempre despreparado para o que via. Atentemo-nos, entretanto, à obra de Warhol principalmente.
Olhando alguma de suas obras com um olhar algo pueril, talvez não nos demos conta do subtexto contido em cada uma delas. Ao transformar uma conserva (afinal, a lata de sopa era, em principio, somente isso) em ícone da arte da segunda metade de um século, além de impulsionar as vendas da marca em direção a ionosfera, Warhol com uma deliciosa ironia questionava um fenômeno que já se fazia perceptível nos idos de 1950: a massificação de nossas subjetividades. É claro que enumerar as questões trazidas a tona por uma obra de arte é uma atitude no mínimo desprovida de sensibilidade e não e isso que queremos aqui. Uma obra de arte não faz perguntas. Faz sim com que nós as façamos. O artista – e foi esse o grande mérito de Warhol – nos induz ao questionamento. Assim foi e assim deve ser.
Portanto ao vermos personalidades de um determinado momento histórico transformadas em obras de arte nos deparamos com um paradoxo próprio de nosso tempo qual seja a perda do significado intrínseco daquilo que se torna consumível, independentemente da história própria do objeto, imagem, etc.... Ao mesmo tempo, vemos o fantástico poder fagocitante do sistema capitalista, capaz de ignorar toda a mensagem trazida por um ícone de outra filosofia ou ideal, simplesmente inserindo-o no sistema e elevando-o ao status de ícone pop. Assistimos atualmente à Che Guevara vendido em pôsteres para adolescentes rebeldes, Hare Krishnas comendo no Mcdonald’s, bandeiras da antiga União Soviética vendidas em lojas de artigos vintage, Sun Tzu em aulas de administração de empresas, tudo isso em uma aparente ode a descontextualização e ao reaproveitamento cultural. Tudo perde seu significado original, sua identidade, e suas referências, perdendo conseqüentemente sua razão de existir, a não ser que exista inofensivamente. É isso que Andy Warhol tenta mostrar quando coloca nosso cotidiano em posição de arte. Nossa percepção da arte deve ser necessariamente subjetiva. A arte não pode ser obvia, ao menos que seja ironicamente obvia, numa pretensa obviedade que tem como único objetivo nos impulsionar ao desconforto e ao hediondo. Tudo tem uma história, um contexto e um ideal.
A capacidade dos meios de comunicação em massa de criar ou destruir mestres com legiões de fieis seguidores é também alvo da ironia de Warhol. Nosso bom senso diz que algo a ser idolatrado é algo que concentra em si todas as virtudes que um grupo de pessoas enxerga como virtudes. E para enxergá-las é preciso um processo paulatino de avaliação, assim como um pintor que diariamente pinta pouco a pouco seu quadro, avaliando-o e medindo sua próxima pincelada. Ídolos não são tão disponíveis quanto latas de sopa!!!
Entretanto, seria isso necessariamente algo mal? Ou teríamos encontrado definitivamente o sistema capaz de colocar todas as idéias dentro de um mesmo barco sem necessariamente fazer com que todas batam de frente (economizando assim muitas e muitas vidas). Só o tempo (ou um próximo ensaio) nos dirá se a perda da identidade não é necessariamente a única e ultima saída para a humanidade...como viu Warhol.

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Fluxo

Não raro, me pego no meio de algumas análises recorrentes em minha cabeça. Ainda que pareça um pouco inútil e fora de moda, vejo-me muitas vezes pensando sobre um assunto: o fracasso do socialismo, ao menos como experimentado até agora pela humanidade.

Não procuro fazer uma análise pragmática de tal fracasso. Este tema já foi por diversas vezes objeto das mais variadas analises dentro de um enfoque da estrutura do estado. Hoje vemos o antigo estado socialista soviético como um grande show de horrores – repressão, uma máquina estatal gigantesca, liberdades anuladas pelo medo da traição(ops!!!), isolamento com o resto do mundo, são algumas dos vários diagnósticos que fazemos do que se passava atrás da antiga cortina de ferro. Entretanto estes são conceitos que analisam o estado e sua estrutura, e não sua fundamentação doutrinaria ou filosófica.

Devemos também atentar para o fato de que a União soviética não era um estado marxista, mas socialista, tendo utilizado a doutrina de Marx para fundamentar sua revolta bolchevique. Contudo, atentemo-nos para a doutrina marxista mais especificamente.

Tive, durante um ano na faculdade de direito, aulas com um ilustre professor que costumava dizer que o socialismo sempre esteve fadado ao desaparecimento por tentar negar o direito de propriedade, o qual seria inerente a natureza humana e, portanto, inevitável. Confesso que nunca fui adepto de teorias ou idéias que atribuíssem a uma natureza humana causas ou escolhas quanto a métodos sociais. Para mim soava bastante arrogante a preposição de que o capitalismo, ou ao menos a propriedade privada fossem inatos, por ser a apropriação de algo “útil” e “valorável” uma condição da natureza humana. Portanto, sempre defendi que qualquer empecilho para uma eventual sociedade sem propriedade privada seria apenas uma questão de momento histórico, uma questão de tempo e de evolução da humanidade rumando para um estágio diferente, no qual a dinâmica das forcas do capitalismo perderia sua coesão – pelos mais diversos motivos. A apropriação infinita de recursos leva inexoravelmente a um esgotamento do sistema em analise, o que induz e ao mesmo tempo obriga a um contingenciamento no uso da propriedade privada, ou então causa o caos total.

Entretanto, algo me ocorreu nos últimos meses. Deparei-me com uma palavra muito usada nos dias atuais: fluxo.

Vivemos hoje em uma sociedade em que tudo flui: de alimentos a energia. De informação a contas bancárias. O mundo encontra sua razão de ser no estagio atual na essência do fluxo contínuo. Mas, seria essa uma invenção da modernidade? Estaríamos todos inseridos em um sistema tão caótico em que o fluxo mais e mais rápido passou a ser a única maneira de balancearmos a nossa instabilidade? Ou, como me começa a aparecer, apenas experimentamos hoje em dia um fluxo maior de tudo aquilo que sempre foi “fluente”, só que numa proporção exponencialmente maior, como uma decorrência natural da nossa evolução tecnológica, mas que em nenhum momento induziu movimento à coisas naturalmente estáticas.

A essência da vida e o movimento. Todo ser vivo precisa de movimento, de fluxo dentro de si para estar vivo. A seiva das árvores e plantas flui através de suas veias levando o necessário para a vida (ozônio da fotossíntese); um cérebro funciona pelo fluxo de energia de um neurônio para outro, criando assim uma imagem fantástica do que poderíamos chamar de fluxo de pensamento; o sangue corre pelas nossas veias. Mesmo externamente, entendemos como vivo e relevante aquele corpo que se movimenta. Mesmo para o surgimento da vida o fluxo é algo imprescindível para que haja a fecundação. A vida é um processo de fluxo continuo.

Acho que consegui, desta forma, compreender um subtexto nas idéias de meu professor. Para que algo possa fluir e preciso que, ainda que por uma fração de segundo, outro ser o direcione ou mesmo o impulsione. Naquele instante em que uma coisa impulsiona outra, ou somente direciona seu caminho, torna-se efêmeramente seu dono. Podemos assim dizer que um coração e suas veias são donos daquele sangue enquanto este existir. Mas o coração e as veias sabem que se não bombearem ou não direcionarem o sangue corretamente, também sofrerão as conseqüências. Morrendo o todo, morre a parte. Todo fluxo necessita impulsão e direção.

Entendo, pois, que o que nos é inevitável é o movimento, do qual todos somos causa e conseqüência. O erro do socialismo não está primordialmente na negação da propriedade privada, mas na tentativa de impedir o fluxo pela mãos dos cidadaos. Quando os fenícios inventaram o dinheiro, não objetivavam nada mais do que incrementar o fluxo (de mercadorias, etc...) dinamizando-o. Podemos imaginar que a mente humana não tem uma necessidade de apropriação como um fim em si - uma vez que a apropriação seria o espelho da não apropriação-, mas um desejo por dar destino ou direcionamento a algo.

Sabe-se que o que faz uma economia ser grande e poderosa não é o seu numero de milionários, mas sim o giro, o fluxo de capital passando de mão em mão dentro deste sistema. Talvez seja muita pretensão minha unir natureza humana e sistemas econômicos, mas, de verdade, não seria essa uma boa teoria?

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Sonho acordado

Já faz mais de seis meses que não escrevo para este blog. A empolgação do começo foi derrotada pela falta de acesso dos internautas. Muitas vezes nos julgamos auto-suficientes a ponto de dizermos que não escrevemos para que pessoas leiam. Que nada. Dependemos do aval dos outros, e talvez uma das grandes lições que a vida pode nos ensinar é justamente a de sermos suficientes para nós mesmos. Não sei. Só sei que quando escrevi pela primeira vez para este blog tinha a esperança de poder compartilhar idéias e pensamentos com pessoas que buscassem por algo semelhante. Em vão. Seis meses depois e meu blog não teve um único acesso. Mas não adianta chorar o leite derramado. Dizem que a propaganda é a alma do negócio, não é? Pois minha maldita timidez me impede de fazer propaganda. Pelo menos eu não fiquei vindo ver se alguém tinha entrado no meu blog. Deixei-o de lado quando vi que não teria jeito. E assim foi.
Seis meses. Como passou rápido. Como as coisas mudam em seis meses!!! Como a gente muda em seis meses!!! Pois seis meses atrás eu achava que tinha encontrado meu grande amor; me achava um grande escritor em potencial e cria piamente que o São Paulo ia ganhar o campeonato brasileiro. Ledo engano. Eu até esqueci como eu fazia para acessar este blog. Graças ao acaso (para aqueles que no acaso acreditam) encontrei um papel com as instruções de como acessar o weblogger. Nem ao menos me lembrava de que o havia escrito.
Mas como eu ia dizendo, é impressionante como nos iludimos com nós mesmos (ou será que isso é um traço gravíssimo de uma perceptível imaturidade minha?!?!?!?). O maior termômetro de como mudamos são os nossos planos. Pois vivemos fazendo planos para quando o amanhã chegue. Nos entupimos de suspiros e ideais que evaporam na menor contradição. Vemos então que não fazíamos planos, apenas sonhávamos. Sonhávamos com um (im)possível amanhã que deveria ser do jeitinho que planejávamos e que diante da menos adversidade ou contradição esvaiu-se no ar. Mas quem consegue não fazer planos (ou sonhar)? Aquele sonho que sonhamos antes de dormir. Quando colocamos a cabeça sobre o travesseiro e por alguns instantes nos deixamos levar por aquele impossível que se escancara diante de nossos olhos ainda entreabertos que olham para um nada muito além daquela parede branca que se ergue diante de nós e que tem como função primordial ser apenas a sustentação de um dos lados do dormitório. E este sonho que sonhamos com um esboço de sorriso nos lábios, ainda que nosso senso comum (aquele tão criticado por uns e louvado por outros) nos diga: Pare de rir o idiota!!!!! Neste momento somos idiotas conscientes de uma idiotice que nos alegra a alma e nos embala mesmo quando nossos olhos retomam sua expressão natural de vigília, e nós, já conscientes que tudo não passava de um caso recorrente do chamado “sonho acordado”, nos viramos para o lado e com o último fio daquele riso, fechamos os olhos e dormimos o sono real que devemos dormir.
Somos eternos sonhadores.