quarta-feira, dezembro 05, 2007

Me, my self, and I

Prezados leitores, perdoem-me a preguiça. Durante quase um mês longe do blog não pude postar coisas novas. Hoje tento compensar minha ausência com uma idéia que é, em última análise, decorrência inevitável dos dois últimos textos, embora possa no começo parecer um pouco confusa.

Numa linha cronológica, afirmei nos dois últimos posts que: a) a humanidade, ou pelo menos sua porção de cultura ocidental, vive hoje em dia uma espécie de febre de prazeres, uma angústia causada pela busca desenfreada pela ausência total das dores, e b) que tais buscas (ou a própria angústia da humanidade) tenha origem na substituição da ordem psicológica do equilíbrio/desequilíbrio por uma ordem psicológica do bem/mal. Apontei como sendo o denominador comum do surgimento da visão de bem/mal a criação do monoteísmo, especificamente com o povo judeu, milênios antes do cristianismo e do islamismo.

Mas, como é inevitável, me perguntariam: o que tem a ver uma coisa com a outra? A resposta é extremamente complexa, e mesmo eu, que agora escrevo este texto, talvez não poderia dá-la de forma satisfatória. Mas como aqui o objetivo é não ter vergonha de pensar (e fazer pensar) vamos arriscar.

O ponto que se pode identificar como sendo o do início da luta do bem contra o mal (e não mais de uma simples, mas árdua, compensação entre o equilíbrio e o desequilíbrio) é o do surgimento do monoteísmo por alguns motivos. Até então havia uma noção muito sutil de individualidade no ser humano. O homem era aquilo que sua tribo ou seu grupo fazia dele, bem como aquilo que seus deuses faziam dele. Poder-se-ia dizer que a mente humana não teria até então desenvolvido algo que hoje nos parece inevitável: o núcleo duro do “eu”. Ou seja, não teríamos desenvolvido de forma total o que hoje, em inglês, chamamos de “self”.

A correlação entre o self e o monoteísmo é simples e parte de uma premissa simples: o homem somente consegue enxergar e criar aquilo com que se identifica. Todas as mitologias, todos os rituais pagãos, todos os ritos xamânicos partem da premissa de que o homem da tribo era um ser totalmente influenciável pelas forças da natureza. A alma humana (alma, não o espírito), do latim anima, seria algo volátil e algo influenciado por forças externas a ele. Isso seria algo totalmente natural, algo que se encontraria perfeitamente presente na natureza.

O surgimento do monoteísmo tem um significado claro: a partir deste momento o homem toma consciência de si como um ser uno e independente da natureza, a qual regia até então sua existência. Surge, ao invés de uma gama de deuses que refletiam a natureza fluida e inconstante do homem, um único deus, o qual será, a partir de então o exemplo, o guia, aquele que determina o que é bom e o que é mau, o que é sagrado e o que é profano. Perceba-se: a noção de “mal” se relaciona, de certa forma, com tudo aquilo que tira o homem do controle de si mesmo, tudo aquilo que o tira do controle de sua própria existência (considerando-se a existência como a média de características encontradas nos homens em determinado local e época). Nesta leitura, de forma inevitável, a natureza, por suas características sempre em alguma maneira imprevisíveis, se aproxima muito da noção de mal, enquanto o “bem” se identifica com tudo aquilo que mantém o homem e o seu “self” como o senhor de seu destino, a despeito da natureza. O homem cria o que é bom.

Observa-se aqui, a capacidade criativa dos seres humanos. A criação de um “Deus”, como sendo um ser autoconsciente (ou seja, que sabe que ele é “Deus”), que sabe de tudo que acontece sobre a terra (onisciente), que pode fazer qualquer coisa (onipotente), e que está em todos os lugares (onipresente). Trata-se da grande metáfora dos desejos humanos. Quem de nós, reles mortais, não gostaríamos de poder fazer tudo que nos desse na veneta, de saber tudo o que acontece – e até o que pensam de nós - , e de estarmos em todos os lugares (o que implica na possibilidade de viver várias vidas numa só)?

Mas tem muito mais. A criação do “self”, que implica na criação do deus monoteísta, eleva o homem acima da natureza. E aqui a atenção de quem lê este texto deve ser redobrada. Mas antes, deve-se deixar claro o que se quer dizer quando se fala em “self”.

Um exemplo. Quando se faz meditação, o que se busca é um desligamento total do mundo exterior. Para isso deve-se buscar não ouvir, sem que se precise tapar os ouvidos (ouvir sem prender a atenção), inalar sem que se sinta odores de forma consciente, fechar os olhos e não pensar em imagens, ou seja, desconectar-se dos sentidos que nos conectam à realidade externa à nossa mente. Deve-se desligar o raciocínio. O fantástico de tudo isso é que algo perdura, ainda que estejamos longe de qualquer contato com a realidade exterior, embora próximos de uma realidade interior.

A pergunta que deve ser feita é a seguinte: somos os únicos seres dotados de autoconsciência? Eu sei que eu sou “eu”, mas meu cachorro sabe que ele é ele? Minha samambaia da sala de casa sabe que ela é ela? O planeta terra sabe que é o planeta terra? É evidente que eu não vou tentar responder estas perguntas. Simplesmente não temos como saber. Pelo menos não de forma racional.

Tais questões não foram e não serão respondidas. Talvez não haja uma resposta, mas sim um eterno processo de convencimento. Contudo, o que se quer deixar claro aqui é, ao menos nos três últimos textos é que não há essencialmente uma luta entre o bem e o mal, entre as dores e prazeres, e entre o “homem” e a “coisa”. Há, isto sim, uma eterna luta entre, de um lado, a noção de bem e mal, e de outro, a idéia de um mundo onde o interessante é manter-se em pé, de forma equilibrada.