segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Religião e veneno.

Olá. Após aproximadamente um mês longe deste blog resolvi aparecer. Na verdade me senti impelido a retornar ao meu computador para dividir algumas idéias com meus leitores. A criatividade andava escassa. Devia estar em férias. Mas as circunstâncias me trouxeram de volta. Em verdade, dois fatos ocorridos nos últimos dias atraíram minha atenção e a conseqüente vaidade presente em todos que acreditam (estupidamente, talvez) que têm alguma coisa a dizer. Então, cá estou...
A fim de solucionar antecipadamente eventuais dúvidas faz-se preponderante que eu diga o motivo de meu interesse sobre o tema. Quando de minha graduação (mais precisamente há quatro meses) tive o enorme prazer de escrever uma monografia (boazinha, diga-se de passagem) sobre a Liberdade Religiosa, principio garantido pela constituição brasileira e fundamento inafastável do Estado Democrático de Direito em que vivemos. Com esta experiência, acabei por ter um contato muito maior com a teologia e meu interesse pelas religiões e suas conseqüências – e sua inevitável relação com o direito – aumentou muito. Portanto acabo atentando-me muito mais à estes assuntos.
Os dois temas que acabaram por sugar minha normalmente dissipada atenção foram, respectivamente, a reação às caricaturas do jornal dinamarquês Jyllands-Posten e uma pequena nota veiculada no jornal Folha de São Paulo sobre traficantes no Rio de Janeiro. As duas noticias são aparentemente desvinculadas uma da outra por completo. Contudo um liame divino as une.
Quem teve acesso aos meios de informação na última semana pôde ver a reação do mundo islâmico às caricaturas de personagens do Alcorão. Em que pese o relativo mal gosto do desenhista (um mal gosto hilariante, mas mal gosto), jornais de toda Europa, uma vez iniciados os protestos no oriente médio, publicaram maciçamente os desenhos numa espécie de “cruzada” pela liberdade de imprensa. Como todo bom ciclo de revolta, as novas publicações geraram mais e mais protestos, num círculo vicioso que pelo jeito ainda não arrefeceu. Como se sabe, os muçulmanos são um tanto quanto suscetíveis à reproduções pictográficas de seus ícones religiosos numa tentativa de impedir a idolatria (sic!!!!!). A partir das publicações os dinamarqueses foram promovidos a inimigos universais de Allá além de tornarem-se destinatários da mais terrível ofensa do mundo islâmico (tiveram sua bandeira pisoteada em praça pública (sic!!! de novo).
Quando do inicio da “guerra contra o terror” de Bush, creio eu que muitos de nós ficaram assustados com o mecanismo de guerra e com o modus operandi do estereotipo do terrorista islâmico. Afinal, como vencer um inimigo que aceita a mais óbvia das derrotas: a morte. Pela lógica ocidental vence-se uma guerra também através do número de baixas do inimigo. Este raciocínio não funciona quando aplicado contra o combatente terrorista suicida. Se ele morrer não perde...quando muito empata (se não levar nenhum de nós com ele). Assim estávamos fadados à derrota cedo ou tarde. Pensei desta maneira por quatro anos e cinco meses. Esta semana vi que o ocidente não perderá jamais a guerra contra o fundamentalismo. Se as armas ocidentais não podem matar quem já está morto, temos outra arma que pode fazer soçobrar toda a (des)razão extremista: o humor. Pois, como disse certa vez Mario Prata ou Millor - nao sei ao certo: “o humor é a quintessência da inteligência”. Nosso senso de humor – uma ferramenta indispensável na evolução de nossas sociedades – talvez torne-se a única coisa que nos impeça de, algum dia, combatermos o extremismo islâmico com algum outro tipo de extremismo, seja qual for.
Quanto ao outro tema por mim percebido, trata-se da tal matéria jornalística sobre os traficantes evangélicos (sic de novo, ai ai, ai!!!) das favelas cariocas. Segundo a Folha, traficantes de drogas ligados a denominações evangélicas dos morros do Rio de Janeiro estariam perseguindo terreiros de religiões afro-brasileiras como Umbanda e Candomblé . Por mais absurdo que pareça, ao que tudo indica é verdade.
Como sabemos, a grande maioria das denominações neo-pentecostais (auto denominadas evangélicas) associam as religiões afro-brasileiras a demônios (para tirar a dúvida basta assistir a um programa da Igreja Universal da Rede Record e ver o “exorcismo” de pomba-gira e do exu-caveira). Também sabemos que a aceitação dessas denominações vem se tornando cada vez maior nas áreas das periferias das grandes cidades (mas também entre a classe media). Eis aqui um motivo plausível para esta estranha mistura de atos e fatos.
O discurso, ora entendido como retórica, das pregações neo-pentecostais carrega em si um maniqueísmo que assusta ao primeiro olhar. Ofende de tão simplista que é. Esta retórica liga todas as mazelas de um povo a encarnações do “mal” que são personificadas nos personagens, como já dito, de religiões afro-brasileiras. O “bem” se liga à Jesus Cristo, compreendido literalmente como um salvador da pátria. Ademais, ocorre uma cisão entre “nós” (o bem) e “eles” (o mal). Para a lógica desse “nós” e “eles” não interessa quem somos nós, afinal, se eu crer em Jesus Cristo com toda fé do mundo terei a salvação e o perdão de meus pecados. Portanto, crendo em Jesus estou livre para pecar, conquanto que me arrependa a tempo. Além disso, há uma mórbida significância na leitura que estas seitas fazem da figura de Jesus. Todo o tempo é sublinhado pelos pastores que Jesus deu a vida por nós, pecadores. Assim, Jesus tornou-se pop no pós-vida por ter se tornado um mártir que morreu pelo seu povo. E na cabeça de um jovem traficante de drogas do Rio que mergulha de cabeça nestas seitas, parecer um cristo é muito tentador. Nada mais interessante para um adolescente sem horizontes que, do dia pra noite, ter tudo: dinheiro, fama e mulheres. Aliás, devemos lembrar que o sucesso material e financeiro é uma constante nos discursos dos pastores dessas Igrejas.
Pois bem. No dia em que apresentei minha monografia, fui perguntado por um de meus professores se eu acreditava que conflitos religiosos pudessem ocorrer no Brasil. E a mesma resposta repito agora. Conflitos religiosos costumam ser conseqüências ou reflexos de conflitos sociais. De tal maneira que a identificação do tráfico de drogas (e seu perigoso catalisador: a cocaína) com as Igrejas evangélicas, e sua descabida e inesperada ofensiva à identidade negra (será que vão proibir o carnaval e o samba?!?!?!) pode ser o inicio de uma ideologização do crime organizado no Brasil. E isso torna as coisas muitíssimo mais perigosas.
E para finalizar, só tenho a dizer que a razão posta de lado gera frutos podres por muito tempo. Uma espécie de paranóia une os muçulmanos rebeldes e os evangélicos traficantes, a qual deve ser combatida com educação e razão. Estes são os únicos remédios. Afinal, que os mártires fiquem no Oriente Médio.