terça-feira, outubro 30, 2007

A lógica da exclusão

Graças à contribuição de alguns colegas (com quem posso dizer que divido o blog) e principalmente pelas “luzes” por todos eles lançadas, sempre com “comentários super pertinentes e assaz edificantes”, tive, ao ler as colaborações ao último post, uma espécie insight, que agora gostaria de dividir com meus incertos leitores.

Em meu último texto, busquei discorrer de alguma forma sobre a eufórica busca pela ausência das dores em nossa sociedade. Repito, como afirmei, que a ausência total das dores pode levar a uma negação de nossa “humanidade” ou, em outras palavras, pela descaracterização da própria concepção do homem perante si mesmo. Mas, com a contribuição do comentário do João, pude perceber que há uma questão “translúcida” e quase imperceptível, mas que permeia quaisquer discussões sobre dores, morte e toda gama de dualidades que diuturnamente confrontam-se conosco, nas mais diversas situações da vida. Trata-se da questão do equilíbrio.

Antes, um apanhado pseudo-histórico. Durante milênios, o pensamento mítico-religioso do mundo esteve baseado, dentre outras coisas, em visões antropozoomórficas de divindades, e em uma relação muito mais próxima entre o “bicho homem” e a natureza, até então vista como seu inescapável lar. Tais concepções de mundo*, ao contrário do que imaginamos hoje, por seu caráter de afirmação da condição animal do homem, tiveram, ao longo de sua evolução, uma correlação muito mais próxima de um modo de dualidade diferente do que temos em nossa sociedade. Se a dualidade religiosa/jurídica/moral básica que nos chegou é a da luta do Bem contra o Mal (Pecado/Sagrado, Noite/Dia, Certo/Errado, Saúde/Doença, Homem/Mulher, Inferno/Paraíso), a dualidade da filosofia mítico-religiosa primitiva (também conhecida como paganismo) podia ser compreendida pela dualidade equilíbrio/desequilíbrio.

A diferença é brutal. Em primeiro lugar, deve-se observar que os ideais de Bem e Mal são propostos em raciocínios apriorísticos, ou seja, partindo-se de uma idéia de Bem – ou de Mal – para que depois se possa fazer a análise do caso em que tal idéia se apresenta. Em contrapartida, a visão do equilíbrio/desequilíbrio jamais pode prescindir do ambiente, do caso concreto em que se desenvolve a situação em questão.

Necessário que se observe: a noção de Bem absoluto tem hora e lugar de nascimento na história das idéias humana. Até certo estágio da evolução racional, tal concepção era inimaginável. Isso porque, enquanto a natureza rege a vida do homem, enquanto a “mãe gaia” é quem rege o tempo, as estações do ano, as colheitas, a harmonia e o equilíbrio entre as forças é que se põe como o ideal maior. Afinal o equilíbrio é uma decorrência da soma de duas realidades antagônicas entre si (mas nenhuma delas é o bem ideal). O equilíbrio para a colheita está eqüidistante da seca e das chuvas, numa composição equilibrada, dentro do ciclo do tempo. O bom funcionamento de um corpo humano está associado a uma condição ciclotímica apurada e em consonância com a natureza, apurado sistemicamente, e não numa liberação desenfreada de serotonina no cérebro, ou com a produção de bile pelo pâncreas. Mesmo num estágio mais avançado do pensamento (já na Grécia antiga) as características dos Deuses estava na complexidade de suas características, numa composição entre a, p. ex., ira e a sagacidade, e não numa virtuosidade especifica (o que pode ser percebido, de certo modo, até mesmo nos santos do candomblé e de outras bases míticas). Em todos estes casos, é o equilíbrio de traços humanos (variados, antagônicos, sublimes e terríveis), que faz um ser digno de admiração, numa relação sempre conectada ao ambiente em que se dá o jogo.

Todavia, há um momento em que esta visão harmônica (em decorrência de sua menor individualidade) desaparece. Este momento é apontado por muitos historiadores como sendo o do surgimento do monoteísmo. De se notar que aí desaparece a visão dos Deuses de traços humanos, para surgir um Deus que é o modelo, e de quem fomos todos feitos à imagem e semelhança. Neste momento o equilíbrio e sua inevitável harmonia com o mundo desaparece (podemos até mesmo encontrar aqui o embrião da desconexão entre o homem e o planeta, por sua visão da natureza como algo “impuro” e “mal”). Surge, então, a noção de mal, que desde então aterroriza e amaldiçoa as mentes humanas.

Assim, como se vê, o monoteísmo faz surgir uma visão em que o objetivo deixa de ser a soma de características, levando todos os raciocínios para a lógica da exclusão. Se antes somávamos buscando um objetivo, agora exclui-se aquilo que, por conveniência, se nos aparente como “mal”. Curioso notar como a lógica da exclusão permeia toda nossa sociedade, todas as instituições e toda moral ocidental. Até mesmo a economia e o conceito jurídico de propriedade (eu tenho, para evitar o “mal” de não ter...) pode, de algum modo, estar conectados com a noção de mal, falta, desprazer, ausência...

Neste ponto, retomo a questão abordada em meu último texto. Pois, ao que parece, a nossa concepção sobre as dores (e aqui agradeço a contribuição sobre o mal e os instintos que o João fez) somente poderão ser realmente compreendidas e positivamente analisadas com um retorno à essência dos equilíbrios da vida, e não na busca constante de negações da condição humana.

* Para maiores informações, vejam “Então você pensa que é humano” de Felipe Fernandez Armento, e “O Poder do Mito” de Joseph Campbell.

segunda-feira, outubro 15, 2007

O homem e a dor

Há uma pergunta que a humanidade, ao longo de suas histórias, sempre acabou por fazer, em (creio) quase todas as civilizações que por este pequeno planeta caminharam. Tal questão, por mais absurda que possa parecer, está cotidianamente inserida em nossas vidas e conosco se relaciona mediante as respostas que recebeu de nossos antepassados. Haveria, afinal, alguma fundamentação moral ou ética para a existência e permanência da dor humana? O ser humano tem realmente o dever racional de buscar uma existência livre das dores (físicas, espirituais e morais) que assolam a condição humana?

Como diletante assumido que sou (não nego e gosto da idéia de sê-lo), minha abordagem do tema é necessariamente menos acadêmica do que de interpretação livre. Ainda assim, desprovido dos rigores necessários, creio que posso dar uma pequena contribuição aos meus companheiros de jornada.

Em primeiro lugar, a afirmação de que a pergunta acerca da dor já foi inúmeras vezes feita, faço eu baseando-me nas religiões e códigos morais que a humanidade criou em seus mais diversos estágios e momentos de evolução e involução. E isso não significa que a resposta foi (nem de longe) a mesma para todos os povos. Sociedades mais coletivizadas veriam a dor moral como de insuportabilidade muito maior do que sociedades que cultuassem o individuo (para quem a dor física seria mais difícil). Do mesmo modo, a dor física foi, para alguns povos, considerada com um ritual de passagem necessário, e a dor moral como sendo necessária para a coesão do grupo. Mesmo a literatura nos trás exemplos muito interessantes de como a questão da dor, vira e mexe, reaparece no cotidiano e no inconsciente coletivo, haja vista o “Selvagem” de “Admirável mundo novo” e tantos outros personagens que, ao se depararem com uma sociedade que buscava à todo custo eliminar a dor, viam esvair-se parte de sua condição de seres humanos mortais.

Feita esta breve digressão, devemos voltar à pergunta. Afinal, haveria alguma razão para a existência da dor na vida humana? Sei que, retirada de seu “habitat natural” da antropologia, tal questão parece anacrônica se feita nos dias atuais. Mas creio que devemos, e logo, fazer uma abordagem do tema, antes que nos analgesigemos de maneira sem volta.

Nunca um grupo humano teve as condições que a humanidade, em sua sociedade ocidental pós-moderna, está prestes a ter de acabar com as dores humanas. Isso porque as físicas se ataca com analgésicos, os quais a cada dia ficam mais e mais avançados. A dor moral perde espaço a cada dia, seja pelo fim próprio da moral em si, quanto pela surgimento de uma sociedade que não é somente hedonista, mas que também vê a dor como um “problema sistêmico”, ou seja, como sendo algo que interfere diretamente na “afinação do sistema”. Uma pessoa com dores (quaisquer) perde “produtividade” e “desengraxa” a máquina. Nossas dores, desde há muito compreendidas como um mal desnecessário, passam a ser vistas também como uma ameaça ao bom funcionamento, não da máquina humana, mas da máquina produtiva universal, geradora de riqueza financeira e, por anti-humana, desconectada da possibilidade benéfica da dor.

Nessa atual obsessão pela “ausência das dores” começamos a ver, justamente com o fim da dor, o fim de seu substituidor imediato: o luto e o grande crescimento que este, inevitavelmente, enseja. Veja-se que todas estas referências, de alguma base psicológica, tem uma relação direta com a condição do ser humano. A dor e a finitude da existência (e a dor que esta finitude causa) podem vir a fazer falta para o ser humano, e a idéia de um mundo livre de dores é tão assustadora quanto a de um mundo totalmente robotizado.

Creio que devêssemos alterar de alguma forma nosso comportamento diante das dores da vida, do corpo e da existência. A ausência de dores jamais será a existência do prazer. A ausência das dores da existência humana mais se assemelha a um estado de letargia, em que, talvez, precisássemos ser avisados por alguém de que estamos vivos. Em um estado em que os prazeres da vida se materializam e vitrines e no qual as dores se diluiriam em mares de pílulas mágicas. Torço, enfim, para que as futuras gerações busquem, não uma ausência de dores, mas de um significado para a existência destas.

No pain, no gain.