quarta-feira, agosto 11, 2010

A Coragem do Congresso Argentino

Na quarta-feira, 14 de julho de 2010, o Senado argentino aprovou por maioria simples uma lei que reinterpreta um artigo do Código Civil daquele país, possibilitando expressamente o matrimônio (casamento, união civil) entre pessoas do mesmo sexo. Com isso, a Argentina passa a ser o primeiro pais da América Latina a possibilitar expressamente tal união.

Uma das maravilhas da internet é a que nos permite assistir em tempo real aos canais de TV de outros países. Assim, ao saber que os senadores argentinos estavam debatendo o tema, sintonizei um canal portenho chamado Telenotícias. E tive inúmeras surpresas. Em primeiro lugar, pude, uma vez mais, perceber que os argentinos carregam uma noção de civismo que ainda está anos luz à nossa frente. Digo isso porque, ao mesmo tempo, em dois lugares distintos de Buenos Aires, duas marchas, uma favorável e outra contra a lei, eram realizadas. Milhares de pessoas em cada uma pressionavam, cada qual a sua maneira, os representantes no Congresso. E debatiam, com argumentos.

Mas o que mais me impressionou foram mesmo os próprios debates, realizados por vários canais, nos jornais impressos, na internet e nos veículos de comunicação dos próprios grupos políticos e religiosos. Um verdadeiro show de democracia que há muito tempo não se vê pelas bandas na América do sul.

Mas, mais do que isso, gostaria de indicar os argumentos em si dos grupos favoráveis e contrários à referida lei. Não todos, é evidente, pois senão este seria um texto interminável. Vou apontar apenas aqueles que me pareceram mais interessantes, do ponto de vista sociológico e político.

Em primeiro lugar, parte dos senadores (a maioria deles do partido União Cívica Radical) lutou até o último momento por alterar a redação da lei proposta, retirando dela o termo “matrimônio”, e substituindo-o por “união familiar”. Diziam que o termo “matrimônio” tinha concepções e nuances religiosas que poderiam alvoroçar (e realmente alvoroçaram) a sociedade. Afirmavam que o termo união familiar era mais correto do ponto de vista sociológico. Imediatamente representantes das entidades de defesa dos direitos dos grupos homossexuais afirmaram que tal alteração de redação acarretaria na criação de famílias de primeira e de segunda classe, induzindo uma espécie de apartheid familiar. Como se vê, os dois argumentos são válidos, o que demonstra o tamanho do qüiproquó.

Noutro aspecto, afirmavam os religiosos contrários à aprovação da nova lei que a criação de um matrimônio entre pessoas do mesmo sexo (a lei prevê inclusive direto de adoção sem restrições) atentaria contra os direitos das crianças de serem criados por “um pai e uma mãe”. Afirmavam que o direito das crianças era inviolável, e que, dentre esses direitos se encontra um direito à criação por um modelo específico de família, qual seja, o de um pai e de uma mãe. Em contrapartida, os militantes favoráveis à lei apontavam para o fato de que a própria existência na Argentina (e em todo ocidente) de leis reguladoras do divórcio, já modificara, tempos atrás, o “formato padrão” das famílias, sendo considerável que hoje em dia muitas crianças sejam criadas pelos pais e por padrastos e madrastas, muitas vezes em duas casas separadas, o que não destruiu a “instituição família”, que ainda perdura, muito embora modificada. Nesse sentido, não se poderia falar em um modelo atemporal estabelecido de família, vez que esta pode se modificar.

Outro ponto interessante do argumento a favor da lei era a própria determinação constitucional para que não sejam criadas distinções entre cidadãos, como se houvesses homens e mulheres de primeira e de segunda classe. Desnecessário dizer que o episódio nazista foi, como sempre, invocado para carregar as cores do debate.

Como fica claro, o fato de que a Argentina – país de imensa maioria católica fervorosa - tenha conseguido se mobilizar a ponto de enfrentar esta questão já é uma aula de como as sociedades contemporâneas podem e devem se desenvolver e adaptar. Não obstante, é preciso que se considere que a questão não morreu. Pois não se trata de uma simples questão acerca dos direitos da felicidade e dignidade de todos os homens e mulheres sobre a terra, mas uma discussão muito mais profunda acerca da possibilidade de mutação das instituições humanas.

E fica aqui um exercício de futurologia. Se a família se modificou a ponto de não mais se ater ao padrão de “um homem e uma mulher”, por que haveria a necessidade de uma família ser formada apenas por dois indivíduos? Eu sei que pode parecer um absurdo agora, mas as questões mais cruciais da humanidade (igualdade para os negros e índios, voto feminino, aborto) também já foram assim consideradas.