segunda-feira, fevereiro 28, 2011

O acrobata e a rede.

Muitos dos leitores destas linhas já devem ter certa vez sentido, num deslocamento simples ou em uma longa viagem, longe de seu lugar habitual, um sentimento bastante particular, ao mesmo tempo intrigante e fugaz, de total deslocamento e liberdade. Uma sensação de grata solidão, com a possibilidade ser mestre de si mesmo por algumas horas ou dias. Sem prestar contas à ninguém, sem telefone celular – irônica e deliberadamente desligado em nossos bolsos. Situação na qual o ar parece mais leve, assim como a alma. Tudo é possível, uma multiplicidade de caminhos se abrem à sua frente, dando azo à própria infinidade de desejos. Encontros, descobertas, insights, enquanto a paisagem parece assumir uma nova intensidade, jamais percebida. Pode-se assim perceber que a liberdade não é tão somente uma palavra vã, mas uma verdadeira sensação.


“Um viajante solitário torna-se um diabo”. É o que diz um provérbio muçulmano, que (1876-1972) utilizou como título de um romance que tem como tema a condição do homem ao viajar. Nesses viajantes é possível encontrar uma chama espiritual bastante curiosa que procura a independência de modo bastante rápido e até frágil: se a condição de errante se prolonga, o viajante que desvenda cidades como estrangeiro, que fica à superfície da agitação social, logo se cansará de si mesmo, prisioneiro de sua condição inútil. Sua inteligência que olha em seu redor não tardará a submergir, punindo a si mesmo por seu ócio estéril. Daí, a depressão e a crise não estarão longe. Em casos assim, não há outra solução que satisfazer-se até o fim...até o tédio. A fronteira entre a solidão fecunda e o isolamento melancólico é muito, mas muito tênue: para ser capaz de atravessar tais provações infernais, o viajante diabólico deve estar dotado de uma robusta constituição, de um sólido equilíbrio afetivo. Segundo o supracitado Montherlant, “Cada virtude cardeal de um homem é para ele um motivo de solidão. A inteligência isola. A independência isola. A franqueza isola. A coragem isola. A sabedoria isola.”


Como sair desse círculo, que transmuta a liberdade em desgraça? Para tanto é preciso que o homem seja capaz de ser, ao mesmo tempo, sem família e em família. Para empregar uma imagem, a família representa aqui o papel que a rede tem para o acrobata: se a amarração estiver muito frouxa, o risco em caso de queda é o de vazá-la e de se esborrachar no solo. É, portanto, indispensável poder contar com uma rede de segurança deveras resistente para que se possa lançar no vazio com coração leve, realizando manobras e saltos mortais perigosos. Na ausência de tal segurança, somente os candidatos ao suicídio abraçarão a profissão de acrobatas e os viajantes solitários acabarão seus dias como psicopatas. Reside aí a estranha lei psicológica: para atuar no mundo como um solitário destemido, o homem precisa estabelecer e manter laços muito fortes com aqueles que ama, sentindo permanentemente suas presenças a seu lado. Noutras palavras, é preciso ter uma família, biológica ou inventada. Paradoxalmente, parece ser essa a condição de possibilidade da liberdade vivenciável.

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

O bem, o mal e o cisne.

As palavras que serão, a partir de agora, aqui lançadas, muito possivelmente parecerão desconexas, sem um rumo claro, e muito menos serão dotadas de um posicionamento definitivo. A própria idéia de uma “tomada de posição” vai contra a essência do que será aqui colocado. Saliento, contudo, que este aviso inicial não pretende servir como uma inoculação prévia, uma vacina contra os rancores dos desavisados, mas tão somente fornecer um auxílio mínimo, para que o texto não pareça um exercício de verborragia de um bêbado.


Assisti, na noite de domingo, à “O cisne negro”, de Darren Aronofsky, e saí do cinema com falta de ar, com o coração acelerado e com uma descarga elétrica percorrendo todo meu corpo. Era algo semelhante à sensação que se tem quando se acorda pela manhã estando apaixonado. Eu podia sentir meu corpo pulsando. O “Cisne negro” é Nietzsche puro! E Freud! Trata-se de um filme que deveria ser analisado por Joseph Campbell e não pelos críticos (profissionais e amadores – como eu) de plantão.


Não vou dar dicas sobre o filme. Não sou fã de spoilers. Quem quiser que o veja e depois leia novamente estas palavras. Vou apenas dizer que Aronofsky conseguiu levar para a tela do cinema uma quantidade de informação filosófica escamoteada em som e música como eu nunca havia - até onde me lembro – visto. A concepção da dualidade entre o cisne branco e o cisne negro sustenta toda a estrutura do filme e coloca para o espectador a questão primordial.


Em sua obra “Para além do bem e do mal”, Nietzsche coloca em causa a ideia da valoração hierárquica dos instintos humanos. Algo semelhante ocorre em “A genealogia da moral”, obra em que o filósofo alemão questiona a formação dessa mesma hierarquia entre “bem” e “mal”. Em “O Cisne negro”, a personagem principal Nina passa todo tempo alucinada e à beira de um surto de traços esquizóides justamente pelo fato de ter de assumir o seu lado animal, instintivo, sexual. Ou seja, ela quase surta ao ter que deixar de se ver como um anjo e aceitar-se um bicho, humano, capaz de carregar em si a ampla gama da vida. Ela precisa perder o medo. E, de se ressaltar, para Nietzsche, “o medo é o pai da moral”.


Não pretendo teorizar aqui sobre a formação de valores morais. Quero apenar deixar claro que tudo aquilo que durante milênios manteve a vida humana caminhando sobre o planeta – ou seja, nossa condição animal – foi associado às ditas “forças negativas”. A visão contemporânea de mundo aponta que o que vier da cabeça ou do coração de um indivíduo será associado ao “bem”. O que brotar dos recônditos espaços de seus instintos e de suas entranhas será associado ao “mal”.


O filme de Aronofsky vem nos salvar dessa visão. Ele leva para a tela a metamorfose de uma criança em um ser humano completo: animal E transcendente. Ele também mostra quão porosas são as fronteiras entre o bem e o mal. Ele redime as forças ocultas do corpo humano. Em suma, Aronofsky assume o papel de um xamã, ou seja, aquele que nas sociedades primitivas era o responsável pela dominação e (re)equilíbrio dos instintos humanos.


Ao sair do filme, me lembrei de um trecho de uma música de Lulu Santos que diz:

Enquanto isso, não nos custa insistir
na questão do desejo não deixar se extinguir
desafiando de vez a noção
na qual se crê que o inferno é aqui


Enfim: acho que vai demorar para eu ver algo tão completo como “O cisne negro”.