terça-feira, julho 14, 2009

Dona Maria

O fato ora narrado aconteceu em junho de 2003, num princípio de inverno úmido e frio, na cidade de Buenos Aires. Residia eu como estudante, com visto de estudante, espírito de estudante e um algo mais que todos carregamos todo tempo, não importa a classificação dos burocratas da imigração.

Todos os dia, após um almoço cuja máxima variação era o grau de charco da milanesa e o ímpeto da pimenta do reino do purê de ‘papas’, tomava a linha verde do metrô, que liga o norte da cidade ao chamado ‘microcentro’. O ponto de destino chamava – e ainda se chama – Faculdad de Medicina, próximo à confluência das ruas Paraguay e Junin, local das aulas diárias. Estas, de aproximadamente três horas ininterruptas eram prazerosas, mais pelo afã dos professores – jovens e cheio de vontade de exibir sua cultura – do que pelo conteúdo. Afinal, todos sabemos que o grande professor de idiomas sempre foi e será a rua, a noite, a vontade de se comunicar e a condição de estrangeiro, ávido de compreensão daquilo que lhe cerque.

A tarde após as classes seguia como não poderia deixar de ser, com vagares intermináveis pelas ruas, cafés e sob a arquitetura de uma cidade que, por algum motivo mais antropológico que social, sempre quis ser a representante da belle epóque na América do sul, não tendo podido sê-lo por muito tempo.

Ao fim do dia, já com os pés cansado de caminhar, os olhos embotados de tanta diferença de nossos trópicos tupis, e a língua calejada de pronunciar “erres” aspirados, tomava eu o rumo de volta. Devido ao horário – sempre posterior ao término das atividades do transporte coletivo – o retorno era uma longa e benfazeja caminhada até a Plaza Itália, no bairro de Palermo, onde ficava o albergue onde passava as noites.

Foi num destes percursos noturnos que eu a conheci. O primeiro contato foi nada mais que um pedido de esmola:

- Uma monedita por favor!

A primeira reação – a mais convencional possível – não passou de um menear de cabeça, indicando a negação a todo pedido possível naquela situação. Todavia, o espírito santo que creio tutelar as mentes de alguns andantes mundo afora soprou em meu ouvido.

Ao atingir o fim do quarteirão, por algum motivo externo, qualquer coisa que não estava em mim, voltei o olhar e vi, sentada na calçada de uma agencia fechada e imundado Citibank, ela, quem soube posteriormente chamar-se dona Maria.

Voltei o corpo e até ela caminhei. Minha primeira pergunta, no idioma local e talvez após segundos de hesitação foi:
- O que alguém como a senhora faz aqui, uma hora dessas?
A resposta fora um misto de indignação – não sei se pela pergunta ou se pela consciência de sua própria condição:
- Estou aqui por culpa do neoliberalismo, e do presidente que vendeu este país, desrespeitou os velhos e pôs tudo a perder.
Não lembro exatamente o desenrolar imediato do ocorrido. O que sei é que após alguns instantes eu estava sentado ao seu lado, ouvindo um depoimento sincero de uma vítima da bancarrota do país mais próspero da América do Sul até meados do século XX.

Se me é permitida qualquer análise do que ouvi nos instantes seguintes, posso dizer que foi um relato lúcido, fundamentado e extremamente culto de alguém que viveu, por décadas, do sistema de previdência que a Argentina sustentou por anos e anos. Os detalhes da história são, inevitavelmente, detalhes. O que lhes posso afirmar de forma direta é que, nunca, neste período até aqui despendido por mim neste planetinha azul, havia tido a oportunidade de ver e ouvir uma história tão triste, seja por suas nuances políticas, seja pela incongruência em si, haja vista o fato de a mencionada dama falar cinco idiomas, ouvidos e reconhecidos por mim.
Como acho que não poderia deixar de ser, desde de então, no período de dois meses em que fiquei na cidade de Buenos Aires, diariamente eu ali sentava, ao seu lado, e ouvia histórias, de viagens pelo mundo – cujas fotos comprobatória pude ver – e de tragédias pessoais. Ao fim e ao cabo afirmo que foi ali, naquela calçada, que descobri que a tragédia, no sentido de percalços que atingem, e destroem – ao mesmo tempo que enriquecem – a alma humana, podem acontecer com qualquer um de nós.
Fui-me de Buenos Aires no início de agosto.
Em julho de 2005 pude, uma vez mais, visitar a cidade. Em outras condições financeiras, lá estive com meu pai e um primo querido. Numa madrugada de quinta-feira, após algumas garrafas de vinho, tomamos um taxi. Sorrateiramente pedi ao motorista que tomasse o rumo pela Avenida Santa Fé. E lá, em frente à agência do Citibank, encontrei novamente Dona Maria, e a ela apresentei meu pai e meu primo, aos quais havia, muito antes, contado essa história.
Meu mai faleceu em 4 de abril de 2009. E independente de toda vida possível que a morte leva, sei que pude mostrar a ele um pedaço de mim e do mundo que talvez ele não conhecesse. Pude perceber, uma vez mais, e ao lado de minha família que a vida é realmente a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida. E sei que tanto Dona Maria quanto eu pudemos ser testemunhas das vidas um do outro, ainda que por um curto pedaço de tempo.

quarta-feira, julho 08, 2009

Nossos outros

O “branco”, o vazio criativo, é uma sensação desconfortável para todos que pretendem escrever, falar, fazer discursos, compor músicas... Em suma, todos que desejam ver e ouvir o ecoar das próprias idéias. Escrever é um exercício de vaidade e não um ato de bondade para com a humanidade como pretendem alguns candidatos a profetas. Para que possamos escrever precisamos de doses elevadas de autoconfiança e vaidade, mesmo que tudo esteja bem escondidinho sob uma aura de determinação contra a continuidade de um mundo iletrado. Minha descrença em bem e mal absolutos me impede de ver nesse exercício de prazer (e até de luxúria, talvez) que é a vaidade literária algo de negativo. O único perigo é que todo aquele que gosta do som da própria voz corre o risco de se tornar um grande chato.

Terapia em voz (ou caixa) alta à parte, tive hoje um desses momentos de total falta de interesse por mim mesmo. E como o universo continua girando mesmo quando nos achamos grandessíssimos idiotas, minha busca por um mote para estas linhas acabou por levar-me ao grande oráculo da afasia: a videolocadora.

O filme selecionado (ao qual acabo de assistir) fui um chute na nuca, com bota de biqueira de aço. Não por ser desinteressante, mas por ser denso, pesado, daqueles que afundam em uma piscina de parafusos. “O leitor”, com Kate Winslet e Ralph Fiennes, pareceu-me um dos filmes com os diálogos mais bem elaborados que tive a oportunidade de ver. Podem acreditar em mim quando digo que não gosto de ficar indicando filmes, mas este vale a pena. Não pretendo falar do filme. Vou apenas mencionar uma sensação, uma dúvida, que pipocou em minha alma nos 123 minutos bem empregados.

Para não prejudicar eventuais telespectadores da obra, digo apenas que no filme acaba emergindo a questão da culpa e do tempo. Ou melhor, da culpa humana no tempo. Em outras palavras: até que ponto pode-se punir alguém por atos cometidos à muito tempo. Veja-se que esta questão (que em linguagem técnica jurídica tem o nome correlativo de “prescrição”) está intimamente ligada à questão do “ser” no “tempo”, trabalhada por Heidegger.
Evidentemente, não pretendo discorrer sobre filosofia alemã do entreguerras e nem sou capacitado para tanto. Meu objetivo se resume a expor essa angústia da construção do ‘humano’ no tempo que lhe é dado e suas inevitáveis conseqüências. Até que ponto somos os mesmos e quanto podemos mudar? Até onde vai a essência do homem e quanto a vida nos molda? Como vêem, não se trata de afirmações, mas de dúvidas.

Para aqueles que eventualmente comigo dividirem essa angústia, parte metafísica, parte heideggeriana, indico um breve conto, escrito pelo gênio Jorge Luis Borges. O título do conto é “O outro” e está editado em português em “O livro de areia”, última coletânea de textos publicada por Borges antes de sua morte. Qualquer explicação sobre o conto fica por conta do próprio autor, não cabendo a mim quaisquer reduções ou explicações. Aos interessados, segue abaixo um link para uma página em que se encontra o conto por inteiro.
Abraços.

http://luizfelipecoelho.multiply.com/journal/item/400/O_outro_Jorge_Luis_Borges

segunda-feira, julho 06, 2009

O ritual...


Gripe pesada. Dor de cabeça. Coriza e mal estar... Receita para a rabugice e para um texto com 0% de inspiração literária. Minha veia analítica fez-se mais presente e auxiliadora na elaboração destas idéias.

O ponto que inspira estas elucubrações frias é uma conversa que tive esses dias com uma amiga, em meio à amendoins e uma cervejinha. Conversávamos amenidades quando alguém comentou (não sei se eu ou ela) que algumas lojas voltaram a vender discos de vinil 0km. Por óbvio, as gravadoras também estavam apostando nessa retomada do chiadinho e da agulha em caixinhas sobre a estante empoeirada com lançamentos e relançamentos. Novos e clássicos. Tudo de volta (nunca me esquecerei de ir passear na Rua Batista de Carvalho e voltar para casa carregando apaixonado meu disco Xuxa nº2, enquanto minha mãe admirava sua aquisição da trilha sonora de “Passagem para a Índia”).

Inobstante a imensa nostalgia, a questão que veio a tona foi a seguinte: porque? Porque as gravadoras voltavam, nesse momento, à investir no lançamento de discos de vinil (caríssimos, diga-se de passagem)? Duas respostas são automáticas: para combater a pirataria, e/ou porque há uma demanda do mercado pelo retorno dos bolachões.

Mesmo com toda a tentação do mundo, não posso me entregar à discussão sobre a origem da decisão das gravadoras, vez que fazê-lo seria ficar discutindo se o mercado faz a demanda, ou a demanda faz o mercado. Embora de natureza econômica, essa pergunta tem nuances filosóficas e de forte pendor de psicologia de massas. Mas como não tenho interesse de trilhar esse rumo, dobro à esquerda.

A questão que proponho é a seguinte: acredito que estamos (não sei se por nós mesmos ou se por imposição de um grande irmão escondido em algum lugar do mundo ou de minha mente paranóica) cada vez mais em busca de uma ritualização de nossas atividades cotidianas, que se tornaram, com a massificação da produção capitalista, imediatas e desprovidas de sentido. O cd e o mp3 trouxeram a música para (quase) dentro de nossas cabeças. O Mcdonalds transformou a ingestão de nutrientes (!!!) em uma atividade semelhante à de abastecer um carro. Todas as nossas atividades, sem exceção, foram simplificadas ao extremo, ao ponto de não nos ser permitido um tapinha nas costas ou “como vai a família” com o gerente do banco, uma vez que temos o Caixa Eletrônico e a voz irritante do computador. A internet (essa nossa heroína de todas as semanas) roubou-nos o prazer de fazer compras, de passear em livrarias. Enfim, sob o pretexto da velocidade, da facilidade, da praticidade, subtraiu-se nosso ritual de vida. E tudo perdeu o sentido, no sentido mais objetivo que se possa perder.

Não me lembro muito bem quem foi, mas sei que alguns filósofos trataram desse tema, qual seja, o da perda de sentido pela repetição. Creio até mesmo que seja um atributo psicológico de nossa mente. A repetição contínua de uma atividade acaba por retirar o sentido das coisas. O significado (meaning) só pode estar presente em algo que é raro e finito – motivo pelo qual a vida tem um significado intrínseco – e a humanidade, ao longo de milênios e milênios lidou, sacralizou situações e manteve uma relação com as coisas e seus significados. Todavia, de duzentos anos pra cá, a obsessão pela produção resolveu que tudo que não fosse ligado à produção de bens ou serviços com valor de mercado deveria ser posto de lado ou ter sua influência na produção reduzida ao máximo. Com isso, a vida, ao fim e ao cabo, termina por ser tão saborosa quanto um McFish (que pra mim tem gosto de isopor).

A idéia que propus é a seguinte: pode ser que estejamos buscando, cada vez mais, talvez num exercício arbitrário de luxo, dar sentido às coisas. Retornamos à infância, em que aprendemos a nomear as coisa (vez que nomear é atribuir significado). Por isso, preferimos comida japonesa - que não pode ser desritualizada, pois senão perde 90% do sabor – à um lanche rápido. Preferimos um disco de vinil (que tem que ser limpo, posto na vitrola, delicadamente colocado em contato com a agulha, e tem dois lados) a uma música sem sentido tocando num mp3 qualquer. Enfim, preferimos o ritual e o significado à velocidade insossa.

Pode ser que eu esteja devaneando e não consiga convencê-los. Não consegui convencer minha amiga. Para ela, é tudo imposição do mercado, criando novos mercados.
Qual a opinião de vocês?

Sem nome...

Meus caros…Sinto informar-lhes que se abateu sobre mim um misto de gripe e desânimo, não necessariamente nessa ordem. Uma afasia incapacitante e acinzentada que impede qualquer tentativa de produção literária, por mais despretensiosa que seja. As idéias são muitas. Algumas sobre a maravilha da humanidade. Outra sobre a mesquinhez dos homens. Muitas sobre a injusta finitude da vida humana e alguns lampejos de um hediondo sentimento de que alguns humanos não são dignos de tal adjetivo. Cheguei mesmo a ter a impressão de que pretender tratar os cães como humanos seria algo terrível para os cães. Contradição sobre contradição, sobre contradição. Esta a característica humana por excelência.

Nestes dias meus companheiros tem sido o chá verde (que amarela os dente de modo impressionante) e os cobertores (não felpudos, vez que estes produzem séries de espirros cômicas). A internet, ao alcance das mãos, não parece trazer novidades. Sombrios tempos estes em que as manchetes desta semana se parecem demais com as do mês passado, e do retrasado, e assim por diante, ad infinitum...

Muito embora tudo que foi dito, conheço-me bem a ponto de saber que estes traços de bipolaridade (não sei se é isso... não fui diagnosticado por um profissional) estarão bem distantes deste confortável cômodo em que me encontro dentro em breve. Então escreverei sobre flores que não tocaram meu olfato, amores que não arranharam meu coração, músicas que não ouvi, paisagens que não vi... enfim. Utilizarei o arsenal de possibilidades dos que colocam palavras em papéis e que muitas vezes não precisam fazer um mínimo de sentido. Afinal, acho que quero é ser um grande fingidor mesmo (salve Pessoa).

Para a Marta, que me fez – com o maior prazer do mundo – sair da cama e vir até aqui. Este tosco ensaio é pra você.

domingo, julho 05, 2009

http://lattes.cnpq.br/1744912628656412