segunda-feira, janeiro 03, 2011

ENTREATOS

Dentro de algumas horas, Luís Inácio Lula da Silva deixará, ao menos formalmente, o Palácio da Alvorada e a Presidência da República. Após oito anos de mandato, inúmeras viagens internacionais, vários pontos percentuais a mais no PIB e uma taxa de aprovação, até onde sei, jamais vista numa democracia do ocidente, Lula voltará para São Bernardo do Campo para viver – espera-se – como um cidadão comum. Mas os feitos, positivos e negativos, de seu mandato continuarão pairando no ar de Brasília por longo tempo e dificilmente serão ignorados por qualquer pessoa que pretenda analisar o Brasil do início de século XXI.

O conjunto de características impressionantes (repito: positivas e negativas) do país nos últimos oito anos acabam por fazer com que nossas atenções continuem voltadas sobre a própria figura de Lula, mesmo sabendo que depois de amanhã ele será um ex-presidente. Ainda assim, seu magnetismo carismático faz com que se continue analisando seu governo e suas atitudes. Por tais motivos é que venho indicar a todos que, assim como eu, permanecem curiosos em relação ao que mudou (ou não) no Brasil nesse período, um documentário gravado em 2002, produzido e dirigido por João Moreira Salles, às vésperas da eleição de Luis Inácio Lula da Silva. Trata-se de “Entreatos: Lula a 30 dias do poder”.

O documentário, aparentemente despretensioso, não passa de uma colagem de inúmeras cenas dos bastidores, da intimidade de Lula e de seus companheiros, como Palocci, José Dirceu e Gilberto Carvalho durante a reta final da campanha presidencial de 2002. Com a câmera na mão, o diretor seguiu Lula e sua equipe, registrando o que ocorria atrás das câmeras de TV, programas e debates eleitorais. O filme, entretanto, se torna um documento histórico fundamental ao fazer notar alguns traços da personalidade – defeitos e virtudes - de Lula, percebidos pela opinião pública ao longo do mandato e que de certa forma explicam o modo com que ele governou o país.

Lá é possível notar que Lula permanece, o tempo todo no comando de sua equipe. Seu olhar atento é por vezes ameaçador. Contudo, com a mesma facilidade, a postura de ameaça se torna doce e afável, em uma contínua tentativa de seduzir os interlocutores. Aliás, a tentativa de seduzir todos que o cercam parece ser o maior trunfo e o grande cacoete de Lula, o que denota sua vaidade exacerbada. Outro traço interessante perceptível no filme é visão que Lula tem de si mesmo. Vangloria-se inúmeras vezes de sua falta de estudo formal, a ponto de ser aconselhado por Ricardo Kotcho a não tocar mais no assunto durante a campanha. Além disso, Lula vê sua (então possível) eleição como o resultado da tomada de consciência por parte das classes trabalhadoras do Brasil, das quais ele se julga um porta-voz algo messiânico. Notável é ainda a capacidade de improvisação de Lula nas mais variadas situações, bem como sua muitas vezes apontada – por ele mesmo – verborragia. Mas talvez o elemento mais revelador do filme seja a aversão de Lula aos rituais e formalidades institucionais, principalmente os da liturgia do cargo. Em certa passagem ele mesmo menciona seu incômodo com os ritos militares, inerentes à Presidência.

A somatória dos traços mais notáveis de Lula – o ímpeto sedutor, a retórica fácil e o mal-estar diante dos ritualismos e formalidades – talvez explique inúmeros percalços desses oito anos. Mas, muito mais do que isso, mostra como partes do Brasil e parcelas de sua população pouco mudaram em sua mentalidade personalista desde que Sergio Buarque de Holanda indicou em seu “Raízes do Brasil” a figura do “homem cordial” brasileiro, avesso aos rituais, sempre tentando criar uma “ética de fundo emotivo”, em que aos amigos se dá tudo e aos inimigos nada. É a autoridade carismática levada ao extremo.

E mesmo sabendo de tudo isso, quando Lula fala, todos escutam, e a maioria obedece, geralmente com um sorriso no rosto. Não é por outra razão que o maior legado de Lula para o Brasil será a inquebrantável ausência de carisma de Dilma Rousseff. Vai ser bom pro povo brasileiro.