sexta-feira, janeiro 28, 2011

Reações em cadeia no “mundo árabe”.

O desespero de Mohammed Bouazizi parece ter mudado o destino do norte da África e de parte do mundo árabe. Foi ele quem, depois de ter sido impedido por policiais de vender verduras para se sustentar, ateou fogo em si mesmo na tarde do dia 17 de dezembro de 2010, vindo a falecer em decorrência dos ferimentos no dia 4 de janeiro de 2011. Seu ato, recebido pela maioria da população como um martírio em nome do povo tunisiano, deu início aos protestos em massa que levaram à fuga do Presidente Ben Ali do país.

Mas o impulso dado pela imolação de Bouazizi não ficou restrito ao território tunisiano. Como um tsunami que se propaga com velocidade e força, os protestos se espalharam pelo norte da África e pelo Oriente Médio. Ao menos outros dois homens se imolaram com fogo no Marrocos. No Egito, milhares de pessoas foram às ruas exigir a saída do presidente Hosni Mubarak, no poder desde 1981. No Iêmen, uma multidão protestou nas ruas contra uma nova tentativa de reeleição do Presidente Ali Abdullah Saleh, que ocupa o cargo desde 1990. Mesmo em países com pouca ou quase nenhuma expressão política internacional, como a Mauritânia, ocorreram manifestações de caráter aparentemente pró-democracia.

É extremamente difícil traçar uma linha homogênea ligando todas as revoltas. Cada país citado anteriormente tem suas peculiaridades políticas e sociais. A pretensão de colocar todo mundo árabe num mesmo balaio é sinal da ignorância do ocidente sobre a região. Muitos confundem até mesmo a condição de árabe com a condição de muçulmano, esquecendo que nem todo árabe é muçulmano e nem todo muçulmano é árabe (como os iranianos, que são persas, mas, em sua maioria, professam a religião islâmica). As fantasias das Mil e uma noites, e os quadros do pintor francês Jean-Léon Gérôme criaram uma visão irreal do mundo árabe que deturpou a visão dos ocidentais. Ainda assim, é inevitável que se observe o fenômeno social de janeiro de 2011 no norte da África como algo entrelaçado, interconectado (arranjado e combinado via Facebook e Twitter), e cujas conseqüências ninguém pode até agora precisar.

Pode-se dizer que um primeiro elemento das revoltas em andamento tem natureza política: a democracia em muitos destes países é uma verdadeira farsa, com eleições fraudadas e cujo reconhecimento pela comunidade internacional somente se dá em decorrência de interesses econômicos de gigantes como os Estados Unidos e membros da zona do Euro. Para as antigas metrópoles coloniais africanas – a França em especial – os ditadores sempre foram uma ferramenta de contenção social, além de garantidores de um “colonialismo financeiro” disfarçado.

O elemento econômico também pode ser apontado como uma das causas das turbulências. Até mesmo o secretário geral da Liga Árabe, Amr Moussa, afirmou que “as massas árabes estão frustradas e zangadas em toda parte”, o que indica uma aparente homogeneidade pan-arábica nos motivos das manifestações, com nuances de fundo sócio-econômico. Afinal, nem só de fé vive o homem, seja ele religioso ou não.

Resta agora saber qual será o papel da fé islâmica no seguir dos fatos. Os analistas internacionais ainda não conseguiram entrar num consenso no que diz respeito ao caráter laico ou não do movimento. Em outras palavras, não se sabe se o que está a ocorrer se inclina mais para “maio de 68” ou para “Revolução iraniana”. E, bem lá no fundo, alguém acredita que as potências ocidentais vão esperar o desenrolar dos fatos e pagar pra ver, só por amor à “democracia” e à livre determinação dos povos da África setentrional?

segunda-feira, janeiro 03, 2011

ENTREATOS

Dentro de algumas horas, Luís Inácio Lula da Silva deixará, ao menos formalmente, o Palácio da Alvorada e a Presidência da República. Após oito anos de mandato, inúmeras viagens internacionais, vários pontos percentuais a mais no PIB e uma taxa de aprovação, até onde sei, jamais vista numa democracia do ocidente, Lula voltará para São Bernardo do Campo para viver – espera-se – como um cidadão comum. Mas os feitos, positivos e negativos, de seu mandato continuarão pairando no ar de Brasília por longo tempo e dificilmente serão ignorados por qualquer pessoa que pretenda analisar o Brasil do início de século XXI.

O conjunto de características impressionantes (repito: positivas e negativas) do país nos últimos oito anos acabam por fazer com que nossas atenções continuem voltadas sobre a própria figura de Lula, mesmo sabendo que depois de amanhã ele será um ex-presidente. Ainda assim, seu magnetismo carismático faz com que se continue analisando seu governo e suas atitudes. Por tais motivos é que venho indicar a todos que, assim como eu, permanecem curiosos em relação ao que mudou (ou não) no Brasil nesse período, um documentário gravado em 2002, produzido e dirigido por João Moreira Salles, às vésperas da eleição de Luis Inácio Lula da Silva. Trata-se de “Entreatos: Lula a 30 dias do poder”.

O documentário, aparentemente despretensioso, não passa de uma colagem de inúmeras cenas dos bastidores, da intimidade de Lula e de seus companheiros, como Palocci, José Dirceu e Gilberto Carvalho durante a reta final da campanha presidencial de 2002. Com a câmera na mão, o diretor seguiu Lula e sua equipe, registrando o que ocorria atrás das câmeras de TV, programas e debates eleitorais. O filme, entretanto, se torna um documento histórico fundamental ao fazer notar alguns traços da personalidade – defeitos e virtudes - de Lula, percebidos pela opinião pública ao longo do mandato e que de certa forma explicam o modo com que ele governou o país.

Lá é possível notar que Lula permanece, o tempo todo no comando de sua equipe. Seu olhar atento é por vezes ameaçador. Contudo, com a mesma facilidade, a postura de ameaça se torna doce e afável, em uma contínua tentativa de seduzir os interlocutores. Aliás, a tentativa de seduzir todos que o cercam parece ser o maior trunfo e o grande cacoete de Lula, o que denota sua vaidade exacerbada. Outro traço interessante perceptível no filme é visão que Lula tem de si mesmo. Vangloria-se inúmeras vezes de sua falta de estudo formal, a ponto de ser aconselhado por Ricardo Kotcho a não tocar mais no assunto durante a campanha. Além disso, Lula vê sua (então possível) eleição como o resultado da tomada de consciência por parte das classes trabalhadoras do Brasil, das quais ele se julga um porta-voz algo messiânico. Notável é ainda a capacidade de improvisação de Lula nas mais variadas situações, bem como sua muitas vezes apontada – por ele mesmo – verborragia. Mas talvez o elemento mais revelador do filme seja a aversão de Lula aos rituais e formalidades institucionais, principalmente os da liturgia do cargo. Em certa passagem ele mesmo menciona seu incômodo com os ritos militares, inerentes à Presidência.

A somatória dos traços mais notáveis de Lula – o ímpeto sedutor, a retórica fácil e o mal-estar diante dos ritualismos e formalidades – talvez explique inúmeros percalços desses oito anos. Mas, muito mais do que isso, mostra como partes do Brasil e parcelas de sua população pouco mudaram em sua mentalidade personalista desde que Sergio Buarque de Holanda indicou em seu “Raízes do Brasil” a figura do “homem cordial” brasileiro, avesso aos rituais, sempre tentando criar uma “ética de fundo emotivo”, em que aos amigos se dá tudo e aos inimigos nada. É a autoridade carismática levada ao extremo.

E mesmo sabendo de tudo isso, quando Lula fala, todos escutam, e a maioria obedece, geralmente com um sorriso no rosto. Não é por outra razão que o maior legado de Lula para o Brasil será a inquebrantável ausência de carisma de Dilma Rousseff. Vai ser bom pro povo brasileiro.