quinta-feira, setembro 30, 2010

Eu prefiro o Bozo!

Um comediante, descontente com a rentabilidade mensal de sua atividade, resolve candidatar-se a um cargo político eletivo, usando como bandeira principal de sua campanha a sátira ao próprio cargo que busca ocupar e a todos os políticos. É, automaticamente, aprovado por grande parcela do eleitorado que busca utilizar o voto como ferramenta de protesto. O sucesso da empreitada, até certa altura da corrida eleitoral, era evidente.

A breve história acima pode parecer uma crônica sucinta do fenômeno que neste exato momento toma conta do Brasil e que, ao que tudo indica, vai eleger um palhaço (!!) ao Congresso Nacional. Mas não é. Essa é a história de Jón Gnarr, personagem teatral cômico do ator Islandês Jón Gunnar Kristinsson de 43 anos, que fora, pasmem, em 29 de maio de 2010, eleito prefeito da capital da Islândia, Reykjavík, com 34,7% dos votos. Gnarr venceu as eleições sem absolutamente nenhuma plataforma política previamente estabelecida e até mesmo sem contar com um partido político: ele fundou o seu próprio, o qual denominou comicamente de “Melhor Partido”.

Dentre as promessas políticas de Jón Gnarr estava a de conseguir emprego para toda sua família, além de arrumar um trabalho que fosse bem remunerado e que exigisse pouco trabalho. E a população islandesa, num movimento inesperado de rebeldia, comprou a idéia, elegendo o personagem – isso mesmo - para o cargo: o ator alterou o registro civil de seu nome, ficando definitivamente registrado com o nome do personagem. Em outras palavras, como se Chico Anísio tivesse se candidatado e o eleito fosse o Professor Raimundo.

A primeira reação de todos nós brasileiros ao tomarmos conhecimento dessa história verdadeira e bizarra é: “quer dizer então não somos nós os únicos que ridicularizamos a política em geral e a representação em particular?” Pois é. O mundo todo vive uma onda de descontentamento com a democracia representativa, melhor entendida como aquela em que nós, o povo, somos representados por um fulano que nunca vimos pessoalmente na vida e que não faz a menor idéia dos meus problemas. Quando muito conhece alguns dados estatísticos. Os votos de protesto ao redor do mundo são uma demonstração disso.

Mas o fenômeno brasileiro tem suas particularidades perigosas, as quais ficam evidentes numa comparação com seu alter ego islandês. Afinal, o palhaço de lá tem uma ampla formação artística. E a Islândia tem 99,1% de sua população alfabetizada, além de estar em 1º lugar no Ranking Mundial de desenvolvimento da ONU, conhecido como IDH. Em outras palavras, se o palhaço de lá resolver fazer palhaçada no cargo, vai não vai ser por incompetência. Ele vai poder ler todos os documentos que tiver que assinar. Ele poderá, portanto, ser moralmente (e até criminalmente) responsabilizado pela atitude desesperada do povo. No Brasil, depois de tudo, o palhaço vai rir. E nós, cedo ou tarde, vamos chorar.

terça-feira, setembro 21, 2010

A intimidade e a palmada.

Como todos já devem saber, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei bastante polêmico, de autoria da Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), que pretende – segundo o site da própria deputada - “abolir a prática de castigos corporais contra meninos e meninas”, sejam eles praticados sob quaisquer circunstâncias e escusas. Como já alardeado pela mídia, caso aprovada, a Lei poderia ser utilizada como base jurídica para impedir que os pais façam uso das “palmadinhas” como instrumento na orientação de seus rebentos. Muito embora me pareça bastante vaga a efetividade social dessa possível Lei, entendo que antes de mergulharmos em discussões de fundo psicológico e moral é preciso que analisemos o panorama histórico contemporâneo que faz com que inúmeras Leis tenham hoje essa capacidade de elevar os ânimos, justamente por romper as fronteiras da intimidade das famílias.

Em primeiro lugar, devemos considerar o seguinte. A mentalidade liberal, típica de fins do século XIX e início do XX, entendia que o Estado deveria manter-se distante da vida cotidiana dos homens, de modo a evitar possíveis abusos do poder estabelecido (atentados contra a liberdade e propriedade dos cidadãos). Contudo, o próprio desenvolvimento das sociedades terminou por exigir (justamente para evitar o caos) que o Estado agisse, posicionando-se cada vez mais como ente regulador das relações sociais, econômicas e trabalhistas. Mas foi principalmente o ganho de força e legitimidade na esfera internacional das Declarações de Direitos Humanos que deu o empurrão final para que o Direito pudesse decidir acerca do que ocorria do lado de dentro dos lares dos cidadãos.

De fato, em tempos passados, a cultura e a moral em voga exigiam que o Estado se mantivesse longe dos interesses particulares, ao mesmo tempo em que alardeava que o homem, o pai, era o detentor da capacidade decisória da família, com poderes (quase) absolutos dentro das dependências de seu pequeno reino, de seu feudo residencial. Subjugados à ele estavam a esposa e a prole. Todos lhe deviam respeito e fidelidade. E, nessa relação, infinitas barbaridades ocorriam (e, é sabido, ainda ocorrem), sempre à distância dos olhos do Estado e com a bênção de uma moral duvidosa. Contudo, a constatação de que esse terreno era bastante fértil para a ocorrência de iniqüidades que fez com que, paulatinamente, os Estados ocidentais fossem afastando a presunção de que “a casa é um asilo inviolável da família”, e de que a intimidade – por mais nefasta que às vezes fosse – estivesse sempre alheia à tutela estatal.

No plano jurídico, dentre os recentes impulsos no sentido de uma horizontalização do poder na família, pode-se citar a Constituição Federal de 1988, que afirma expressamente serem “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (...) exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. No mesmo sentido o atual Código Civil aponta a existência de um “poder familiar”, exercido pelo pai e pela mãe, e não mais um “pátrio poder”, unicamente atributo do homem.

Mas foi definitivamente com a lei Maria da Penha, a qual busca coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que a sociedade admitiu que a intimidade pode ser desconsiderada no caso de valores maiores e mais nobres (como é a própria dignidade dos indivíduos, sejam homem, mulheres ou crianças) serem colocados a perigo, e que o que ocorre dentro das residências também é de interesse do Estado.

Pois é nesse desenrolar histórico que deve ser inserido e compreendido o projeto da “Lei da palmada”. Afinal, ele é apenas mais uma peça num gradual movimento de irradiação das conseqüências dos direitos humanos para esferas cada vez mais específicas e particulares das relações humanas. E não se trata, como quer fazer parecer parte da mídia, de um projeto “de esquerda” ou “totalitário”.