quinta-feira, dezembro 23, 2004

Fluxo

Não raro, me pego no meio de algumas análises recorrentes em minha cabeça. Ainda que pareça um pouco inútil e fora de moda, vejo-me muitas vezes pensando sobre um assunto: o fracasso do socialismo, ao menos como experimentado até agora pela humanidade.

Não procuro fazer uma análise pragmática de tal fracasso. Este tema já foi por diversas vezes objeto das mais variadas analises dentro de um enfoque da estrutura do estado. Hoje vemos o antigo estado socialista soviético como um grande show de horrores – repressão, uma máquina estatal gigantesca, liberdades anuladas pelo medo da traição(ops!!!), isolamento com o resto do mundo, são algumas dos vários diagnósticos que fazemos do que se passava atrás da antiga cortina de ferro. Entretanto estes são conceitos que analisam o estado e sua estrutura, e não sua fundamentação doutrinaria ou filosófica.

Devemos também atentar para o fato de que a União soviética não era um estado marxista, mas socialista, tendo utilizado a doutrina de Marx para fundamentar sua revolta bolchevique. Contudo, atentemo-nos para a doutrina marxista mais especificamente.

Tive, durante um ano na faculdade de direito, aulas com um ilustre professor que costumava dizer que o socialismo sempre esteve fadado ao desaparecimento por tentar negar o direito de propriedade, o qual seria inerente a natureza humana e, portanto, inevitável. Confesso que nunca fui adepto de teorias ou idéias que atribuíssem a uma natureza humana causas ou escolhas quanto a métodos sociais. Para mim soava bastante arrogante a preposição de que o capitalismo, ou ao menos a propriedade privada fossem inatos, por ser a apropriação de algo “útil” e “valorável” uma condição da natureza humana. Portanto, sempre defendi que qualquer empecilho para uma eventual sociedade sem propriedade privada seria apenas uma questão de momento histórico, uma questão de tempo e de evolução da humanidade rumando para um estágio diferente, no qual a dinâmica das forcas do capitalismo perderia sua coesão – pelos mais diversos motivos. A apropriação infinita de recursos leva inexoravelmente a um esgotamento do sistema em analise, o que induz e ao mesmo tempo obriga a um contingenciamento no uso da propriedade privada, ou então causa o caos total.

Entretanto, algo me ocorreu nos últimos meses. Deparei-me com uma palavra muito usada nos dias atuais: fluxo.

Vivemos hoje em uma sociedade em que tudo flui: de alimentos a energia. De informação a contas bancárias. O mundo encontra sua razão de ser no estagio atual na essência do fluxo contínuo. Mas, seria essa uma invenção da modernidade? Estaríamos todos inseridos em um sistema tão caótico em que o fluxo mais e mais rápido passou a ser a única maneira de balancearmos a nossa instabilidade? Ou, como me começa a aparecer, apenas experimentamos hoje em dia um fluxo maior de tudo aquilo que sempre foi “fluente”, só que numa proporção exponencialmente maior, como uma decorrência natural da nossa evolução tecnológica, mas que em nenhum momento induziu movimento à coisas naturalmente estáticas.

A essência da vida e o movimento. Todo ser vivo precisa de movimento, de fluxo dentro de si para estar vivo. A seiva das árvores e plantas flui através de suas veias levando o necessário para a vida (ozônio da fotossíntese); um cérebro funciona pelo fluxo de energia de um neurônio para outro, criando assim uma imagem fantástica do que poderíamos chamar de fluxo de pensamento; o sangue corre pelas nossas veias. Mesmo externamente, entendemos como vivo e relevante aquele corpo que se movimenta. Mesmo para o surgimento da vida o fluxo é algo imprescindível para que haja a fecundação. A vida é um processo de fluxo continuo.

Acho que consegui, desta forma, compreender um subtexto nas idéias de meu professor. Para que algo possa fluir e preciso que, ainda que por uma fração de segundo, outro ser o direcione ou mesmo o impulsione. Naquele instante em que uma coisa impulsiona outra, ou somente direciona seu caminho, torna-se efêmeramente seu dono. Podemos assim dizer que um coração e suas veias são donos daquele sangue enquanto este existir. Mas o coração e as veias sabem que se não bombearem ou não direcionarem o sangue corretamente, também sofrerão as conseqüências. Morrendo o todo, morre a parte. Todo fluxo necessita impulsão e direção.

Entendo, pois, que o que nos é inevitável é o movimento, do qual todos somos causa e conseqüência. O erro do socialismo não está primordialmente na negação da propriedade privada, mas na tentativa de impedir o fluxo pela mãos dos cidadaos. Quando os fenícios inventaram o dinheiro, não objetivavam nada mais do que incrementar o fluxo (de mercadorias, etc...) dinamizando-o. Podemos imaginar que a mente humana não tem uma necessidade de apropriação como um fim em si - uma vez que a apropriação seria o espelho da não apropriação-, mas um desejo por dar destino ou direcionamento a algo.

Sabe-se que o que faz uma economia ser grande e poderosa não é o seu numero de milionários, mas sim o giro, o fluxo de capital passando de mão em mão dentro deste sistema. Talvez seja muita pretensão minha unir natureza humana e sistemas econômicos, mas, de verdade, não seria essa uma boa teoria?