Graças à contribuição de alguns colegas (com quem posso dizer que divido o blog) e principalmente pelas “luzes” por todos eles lançadas, sempre com “comentários super pertinentes e assaz edificantes”, tive, ao ler as colaborações ao último post, uma espécie insight, que agora gostaria de dividir com meus incertos leitores.
Em meu último texto, busquei discorrer de alguma forma sobre a eufórica busca pela ausência das dores em nossa sociedade. Repito, como afirmei, que a ausência total das dores pode levar a uma negação de nossa “humanidade” ou, em outras palavras, pela descaracterização da própria concepção do homem perante si mesmo. Mas, com a contribuição do comentário do João, pude perceber que há uma questão “translúcida” e quase imperceptível, mas que permeia quaisquer discussões sobre dores, morte e toda gama de dualidades que diuturnamente confrontam-se conosco, nas mais diversas situações da vida. Trata-se da questão do equilíbrio.
Antes, um apanhado pseudo-histórico. Durante milênios, o pensamento mítico-religioso do mundo esteve baseado, dentre outras coisas, em visões antropozoomórficas de divindades, e em uma relação muito mais próxima entre o “bicho homem” e a natureza, até então vista como seu inescapável lar. Tais concepções de mundo*, ao contrário do que imaginamos hoje, por seu caráter de afirmação da condição animal do homem, tiveram, ao longo de sua evolução, uma correlação muito mais próxima de um modo de dualidade diferente do que temos em nossa sociedade. Se a dualidade religiosa/jurídica/moral básica que nos chegou é a da luta do Bem contra o Mal (Pecado/Sagrado, Noite/Dia, Certo/Errado, Saúde/Doença, Homem/Mulher, Inferno/Paraíso), a dualidade da filosofia mítico-religiosa primitiva (também conhecida como paganismo) podia ser compreendida pela dualidade equilíbrio/desequilíbrio.
A diferença é brutal. Em primeiro lugar, deve-se observar que os ideais de Bem e Mal são propostos em raciocínios apriorísticos, ou seja, partindo-se de uma idéia de Bem – ou de Mal – para que depois se possa fazer a análise do caso em que tal idéia se apresenta. Em contrapartida, a visão do equilíbrio/desequilíbrio jamais pode prescindir do ambiente, do caso concreto em que se desenvolve a situação em questão.
Necessário que se observe: a noção de Bem absoluto tem hora e lugar de nascimento na história das idéias humana. Até certo estágio da evolução racional, tal concepção era inimaginável. Isso porque, enquanto a natureza rege a vida do homem, enquanto a “mãe gaia” é quem rege o tempo, as estações do ano, as colheitas, a harmonia e o equilíbrio entre as forças é que se põe como o ideal maior. Afinal o equilíbrio é uma decorrência da soma de duas realidades antagônicas entre si (mas nenhuma delas é o bem ideal). O equilíbrio para a colheita está eqüidistante da seca e das chuvas, numa composição equilibrada, dentro do ciclo do tempo. O bom funcionamento de um corpo humano está associado a uma condição ciclotímica apurada e em consonância com a natureza, apurado sistemicamente, e não numa liberação desenfreada de serotonina no cérebro, ou com a produção de bile pelo pâncreas. Mesmo num estágio mais avançado do pensamento (já na Grécia antiga) as características dos Deuses estava na complexidade de suas características, numa composição entre a, p. ex., ira e a sagacidade, e não numa virtuosidade especifica (o que pode ser percebido, de certo modo, até mesmo nos santos do candomblé e de outras bases míticas). Em todos estes casos, é o equilíbrio de traços humanos (variados, antagônicos, sublimes e terríveis), que faz um ser digno de admiração, numa relação sempre conectada ao ambiente em que se dá o jogo.
Todavia, há um momento em que esta visão harmônica (em decorrência de sua menor individualidade) desaparece. Este momento é apontado por muitos historiadores como sendo o do surgimento do monoteísmo. De se notar que aí desaparece a visão dos Deuses de traços humanos, para surgir um Deus que é o modelo, e de quem fomos todos feitos à imagem e semelhança. Neste momento o equilíbrio e sua inevitável harmonia com o mundo desaparece (podemos até mesmo encontrar aqui o embrião da desconexão entre o homem e o planeta, por sua visão da natureza como algo “impuro” e “mal”). Surge, então, a noção de mal, que desde então aterroriza e amaldiçoa as mentes humanas.
Assim, como se vê, o monoteísmo faz surgir uma visão em que o objetivo deixa de ser a soma de características, levando todos os raciocínios para a lógica da exclusão. Se antes somávamos buscando um objetivo, agora exclui-se aquilo que, por conveniência, se nos aparente como “mal”. Curioso notar como a lógica da exclusão permeia toda nossa sociedade, todas as instituições e toda moral ocidental. Até mesmo a economia e o conceito jurídico de propriedade (eu tenho, para evitar o “mal” de não ter...) pode, de algum modo, estar conectados com a noção de mal, falta, desprazer, ausência...
Neste ponto, retomo a questão abordada em meu último texto. Pois, ao que parece, a nossa concepção sobre as dores (e aqui agradeço a contribuição sobre o mal e os instintos que o João fez) somente poderão ser realmente compreendidas e positivamente analisadas com um retorno à essência dos equilíbrios da vida, e não na busca constante de negações da condição humana.
* Para maiores informações, vejam “Então você pensa que é humano” de Felipe Fernandez Armento, e “O Poder do Mito” de Joseph Campbell.
2 Comments:
Digníssimo boy,
Dada a impossibilidade de um bate-papo imediato, fica registrada,
pela primeira vez na forma escrita, a admiração pelo seu ânimo de discussão e desenvoltura nos temas
espinhosos.
Gostei da forma como tratou a dor, em seu texto anterior, rechaçando no fim o "pessimismo de
Schopenhauer", embora ache que as vezes o prazer possa ser a ausência de dor (mesmo que não em sua completude) assim como outras vezes a dor/prazer possam se confundir.... todavia não sou masoquista para lhe afirmar categoricamente.
Grande surpresa me causou este seu elogio ao equilíbrio e à condição humana, pois pela recomendação
do livro "Então você pensa que é humano ?" (que na ignorância do meu antropocentrismo está sendo difícil de engoli-lo) imaginei que você escreveria textos "anti-humanistas".....
Acredito fielmente na idéia de equilíbrio, seja para dualidades como corpo/mente, razão/emoção, micro/macrocosmo e também para a "filosofia moral", pois "virtude", p.ex: coragem, não é senão a harmonia entre o desiquilíbrio pelo excesso
(temeridade) e pela falta (covardia)......
Mas não prolongarei para não fugir ainda mais !!!!
Grande abraço e continue a escrever !!
Boy? Então é um garoto?! Risos
Ah, o cabresto do monoteímo, que premeou muito da filosofia, ciência e ajudou a constituir as bases da nossa sociedade ocidental (que insiste em não respeitar o equilíbrio da dualidad precípua e necessário entre os lados do mundo) e quer se impor. Sei que não deveria com essa simplicidade, mas once again, Thiago: Bravo!
Há material suficiente pra começar um livro? Há lugar pra uma parceria? Tema? Idéias? Vontade?
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