terça-feira, setembro 21, 2010

A intimidade e a palmada.

Como todos já devem saber, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei bastante polêmico, de autoria da Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), que pretende – segundo o site da própria deputada - “abolir a prática de castigos corporais contra meninos e meninas”, sejam eles praticados sob quaisquer circunstâncias e escusas. Como já alardeado pela mídia, caso aprovada, a Lei poderia ser utilizada como base jurídica para impedir que os pais façam uso das “palmadinhas” como instrumento na orientação de seus rebentos. Muito embora me pareça bastante vaga a efetividade social dessa possível Lei, entendo que antes de mergulharmos em discussões de fundo psicológico e moral é preciso que analisemos o panorama histórico contemporâneo que faz com que inúmeras Leis tenham hoje essa capacidade de elevar os ânimos, justamente por romper as fronteiras da intimidade das famílias.

Em primeiro lugar, devemos considerar o seguinte. A mentalidade liberal, típica de fins do século XIX e início do XX, entendia que o Estado deveria manter-se distante da vida cotidiana dos homens, de modo a evitar possíveis abusos do poder estabelecido (atentados contra a liberdade e propriedade dos cidadãos). Contudo, o próprio desenvolvimento das sociedades terminou por exigir (justamente para evitar o caos) que o Estado agisse, posicionando-se cada vez mais como ente regulador das relações sociais, econômicas e trabalhistas. Mas foi principalmente o ganho de força e legitimidade na esfera internacional das Declarações de Direitos Humanos que deu o empurrão final para que o Direito pudesse decidir acerca do que ocorria do lado de dentro dos lares dos cidadãos.

De fato, em tempos passados, a cultura e a moral em voga exigiam que o Estado se mantivesse longe dos interesses particulares, ao mesmo tempo em que alardeava que o homem, o pai, era o detentor da capacidade decisória da família, com poderes (quase) absolutos dentro das dependências de seu pequeno reino, de seu feudo residencial. Subjugados à ele estavam a esposa e a prole. Todos lhe deviam respeito e fidelidade. E, nessa relação, infinitas barbaridades ocorriam (e, é sabido, ainda ocorrem), sempre à distância dos olhos do Estado e com a bênção de uma moral duvidosa. Contudo, a constatação de que esse terreno era bastante fértil para a ocorrência de iniqüidades que fez com que, paulatinamente, os Estados ocidentais fossem afastando a presunção de que “a casa é um asilo inviolável da família”, e de que a intimidade – por mais nefasta que às vezes fosse – estivesse sempre alheia à tutela estatal.

No plano jurídico, dentre os recentes impulsos no sentido de uma horizontalização do poder na família, pode-se citar a Constituição Federal de 1988, que afirma expressamente serem “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (...) exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. No mesmo sentido o atual Código Civil aponta a existência de um “poder familiar”, exercido pelo pai e pela mãe, e não mais um “pátrio poder”, unicamente atributo do homem.

Mas foi definitivamente com a lei Maria da Penha, a qual busca coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que a sociedade admitiu que a intimidade pode ser desconsiderada no caso de valores maiores e mais nobres (como é a própria dignidade dos indivíduos, sejam homem, mulheres ou crianças) serem colocados a perigo, e que o que ocorre dentro das residências também é de interesse do Estado.

Pois é nesse desenrolar histórico que deve ser inserido e compreendido o projeto da “Lei da palmada”. Afinal, ele é apenas mais uma peça num gradual movimento de irradiação das conseqüências dos direitos humanos para esferas cada vez mais específicas e particulares das relações humanas. E não se trata, como quer fazer parecer parte da mídia, de um projeto “de esquerda” ou “totalitário”.