Verdade: Objeto ou Significado???
Não é de hoje que a humanidade, em suas mais diversas formas de agrupamentos sociais, tem tido, em maior ou menor escala, um contato interessante com a questão da “verdade”. De fato, durante um enorme período de nossa história a “verdade” foi um atributo das coisas, o qual era conferido pela religião, por aquilo que era Sagrado. Questões sobre a posição do planeta no espaço, sobre a natureza divina do homem, sobre a imortalidade da alma, muito antes de poderem ter sido analisadas pela ciências, foram objeto de análises teológicas nos discursos de inúmeras religiões ao redor do globo, em diversos momentos históricos. Todas essas análises da “verdade”, às quais poderíamos denominar “verdades reveladas” sempre tiveram um papel fundamental no surgimento e no ocaso das mais diversas civilizações. A existência de um discurso religioso conciso e legítimo que explique o mundo e analise a realidade tem uma conexão inevitável com a interpretação da verdade nos mais diversos momentos da história.
Feita essa breve digressão é preciso que se pontue o momento em que algumas questões se entrelaçam. São elas, por excelência, a conexão entre a Religião, a Ciência, a Verdade, o “Método” Cartesiano e, em partes, a filosofia de Kant. Todos esses aspectos se interconectam para poder fazer com que compreendamos o caminho que trouxe a porção ocidental da humanidade da Idade Média em direção ao Iluminismo, o qual possibilitou que criássemos o mundo que hoje conhecemos.
Como afirmado outras vezes, pode-se dizer que a compreensão total da “verdade” é algo que somente é possível num ambiente religioso. Não quero dizer com isso que a ciência é menos apta a explicar o mundo do que a religião. Sustento, ao contrário, que somente quando se aceita a existência de uma “verdade” a ser revelada, se pode compreender tal “verdade” como sendo total em si mesma. O homem comum, desconectado de uma visão religiosa que lhe permita acreditar que detém a realidade do mundo, sempre estará obrigado a duvidar de seus cinco sentidos. Em outras palavras, nossos sentidos (visão, olfato, audição, tato e paladar) nos enganam. Esse “engano ontológico” impede que tenhamos uma apreensão total da realidade. Somente somos capazes de perceber “fatias” da verdade. Tais enganos dos sentidos foram muito bem analisados por René Descartes em seu celebre livro de 1647 “Discurso do Método”[1]. Um outro aspecto da dificuldade da apreensão da realidade tal como é pelos seres humanos se encontra na convergência de nosso olhar. O ser humano ao olhar um cubo, jamais conseguirá ver, ao mesmo tempo e diretamente (sem o auxílio de espelhos) a totalidade do cubo, e mesmo com espelhos, nosso foco de visão sempre estará direcionado a um dos seis lados[2]. Tais “impossibilidades congênitas” da humanidade em sua relação com a verdade total, sempre fazem com que, de tempos em tempos, o discurso religioso (muitas vezes fundamentalista) volte à tona.
Num outro aspecto, há que se fazer uma distinção entre a “verdade” que se pretende analisar neste texto, e a verdade vulgar, aquela que cotidianamente contrapomos à mentira. Aqui não se faz uma menção direta à verdade/mentira. Esta verdade vulgar tem seu campo de análise reduzido à mente humana. Neste sentido, podemos dizer que é verdade aquilo que um ser humano afirma quando seu discurso está de acordo com o que se passa em sua cabeça, ou seja, quando discurso for de acordo com a percepção dos sentidos.
Esse jogo de vai-e-vem entre a “Verdade Revelada” e a Realidade Absorvida pelos sentidos (empírica) faz com que a humanidade, mormente em sua porção ocidental, acabe por construir sistemas lógicos muito interessantes quando o objetivo é a análise de determinado fato ocorrido no passado. É o que Michel Foucault chamou de “jogos de verdades”[3]. A tese de Foucault se sustenta alegando que, como é impossível saber a realidade sobre determinado ato de outrem ou fato ocorrido no passado, o que resta ao inquisidor é a possibilidade de, recolhendo depoimento de pessoas que foram testemunhas de partes de atos e/ou fatos conexos com o objeto de dúvida, reconstruir de maneira verossímil os passos anteriores ou imediatamente posteriores ao fato para, assim, buscar convencer o inquisidor de que tal fato realmente ocorreu[4]. No mesmo sentido, e através da mesma mecânica, busca-se descobrir a verdade dos pensamentos do agente observado. Observe-se: Foucault coloca em xeque com uma única jogada dois pilares de nossa modernidade. Por um lado ele deixa claro que o homem jamais será capaz de saber como algo que ocorreu no passado de fato ocorreu, assim como jamais será capaz de saber como alguém está pensando, pois o observados dos fatos está preso a limites temporais (passado) bem como à sua impossibilidade Kantiana de observar o todo. Por outro lado ele fala não em descoberta da realidade, mas em um “jogo de verdade” cujo único objetivo é o convencimento. O que se busca é convencer que fulano cometeu tal crime, ou que tal fato ocorreu. Afinal, a verdade propriamente dita, está, ou no passado, ou na cabeça de alguém, e nada pode retirá-la de lá.
Talvez Foucault não saiba, mas com esse seu lance, tenha talvez reconciliado a visão religiosa da verdade e a análise cartesiana e científica (empírica até) da busca da realidade. Obviamente ele não diz que devemos aceitar uma verdade revelada por um Sacerdote de qualquer confissão religiosa que seja. Contudo, também não diz que nos é possível uma apreensão total da realidade por nossas próprias impossibilidade biológicas. Foucault, buscando analisar a conexão entre tais opostos, num exercício de eureka fascinante, demonstra que a apreensão da realidade não reside na simples observação do objeto, como seria de se esperar da ciência, nem tampouco no discurso livre, mas moralmente aceitável, de um pároco qualquer. Foucault, talvez sem querer, nos dá a resposta de que a análise da realidade é um exercício simbiótico entre o objeto e seu significado, ou seja, entre a explicação científica e a moral ou religiosa e, até mesmo, ética.
Tal visão talvez seja a grande saída para alguns dos grandes impasses da pós-modernidade. Afinal, sabemos hoje que não temos como descobrir a verdade. Mas também não queremos ser ludibriados por novas religiões que provam um crime através de ordálias[5]. A idéia de Foucault faz com que se vislumbre um momento no futuro da humanidade em que talvez, conscientes da impossibilidade de descobrirmos a existência de algo no passado e na mente de alguém, os contendores em um litígio judicial possam jogar uma partida de futebol, ou se desafiarem num duelo de dança para ver ao lado de quem estava a verdade.
[1] Nesta obra o autor ensina, em suma, uma única arte: a da dúvida como sendo a grande ferramenta para o bom raciocínio. Esta obra, além de enfurecer a Igreja e quase custar a cabeça de Descartes, deu início ao método científico, lançando as bases da ciência moderna, a qual até hoje, com poucas variações práticas, é toda baseada na tentativa e erro, e na dúvida persistente até o alcance de um resultado.
[2] Esta característica da impossibilidade de uma visao total por parte do ser humano foi analisada por Kant em sua obra “Crítica da Razão Pura” de 1781.
[3] Michel Foucault - (Poitiers, 15 de outubro de 1926 — Paris, 26 de junho de 1984) foi um filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France desde 1970 a 1984.
[4] “A verdade e as formas jurídicas” Michel Foucalt.
[5] A ordália consistia em que, na divergência de testemunhos, remetia-se a verdade para o juízo de Deus, ou seja, Deus não podia beneficiar o culpado contra o inocente. Em Portugal, os ordálios utilizados foram de dois tipos: o ferro em brasa e o duelo judicial. No primeiro caso, o juiz e um sacerdote aqueciam o ferro, que o acusado era obrigado a segurar. O juiz cobria-lhe a mão com cera, punha-lhe por cima linho ou estopa e enfaixava tudo com um pano. Decorridos três dias, o estado da mão era analisado e se houvesse chaga o réu era considerado culpado e imediatamente condenado. O duelo judicial a cavalo ou a pé, segundo a classe social dos intervenientes, durava três dias. Após esses dias, o vencido perdia o processo, se não houvesse vencido, perdia quem tinha pedido o desafio.
2 Comments:
Foucault e o famoso "Samba do Crioulo doido"! Huahuahuah Muito bom humor. Há postagens ele não estava presente assim. Não lembro onde li (olha a DDA aí, minha gente) certa vez, num desses livros de medicina alternativa bioenergética, que nascíamos com mais que cinco sentidos. Mas fomos perdendo com o passar dos anos... Por mais viagem que seja, é interessantes pensar como você mesmo sugeriu, no que isso implicaria na evolução humana. Imagine se pudéssemos ter Magistrados com alto desenvolvimento da telepatia... Como ficaria a legalidade das provas X convencimento do juiz? Seria ilícito o juiz ler a mente do peão e do advogadom mesmo diante de testemunho e prova convincentes(mesmo que fotjados, já que não tratamos mesmo da verdade real, e sim do convencimento, da verdade formal)! Cara, que viagem... Aliás, a quantas anda teu ceticismo?
Falando nisso, lembrei: Os cinco sentidos, do Michel Serres.
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