quarta-feira, dezembro 14, 2011

Primeiro como tragédia, depois como farsa.

                 Logo após a mídia nacional noticiar a fundação do PSD, o idealizador da legenda, Gilberto Kassab, em entrevista na Rede Bandeirantes, afirmou ser plataforma do novo partido a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte desvinculada do Poder Legislativo. Houve, inevitavelmente, certo espanto por parte da comunidade jurídica. Por sua vez, semanas atrás, a Senadora Katia Abreu (PSD-TO), fez publicar na mídia artigo no qual defendia a proposta de Kassab. O que ora apresentamos é uma crítica fundamentada às intenções do PSD.

                O artigo da Senadora se inicia com uma crítica à Constituição vigente, chamada de “excessivamente detalhista”. A extensão do texto constitucional é apontada como uma falha. A minúcia e a amplitude são consideradas as causas do “envelhecimento precoce” da Constituição Federal de 1988. Além disso, o artigo alega que nosso país apenas tornar-se-á uma verdadeira potência se “flexibilizar” a Carta Magna, deixando o modelo de Constituição dirigente (que delineia metas governamentais que devem ser atingidas progressivamente) e adotando uma estrutura mais “enxuta” e liberal. Por fim, afirma em tom ameaçador: “Por que esperar por uma ruptura ou um desastre para fazer o que é preciso? Por que não fazer isso em tempos de paz?”.

                Ainda que sob ameaça de “ruptura institucional”, é preciso apresentar aqui algumas considerações. Em primeiro lugar, nossa Constituição Federal já traz em si regras para sua alteração. Com exceção do núcleo duro (as chamadas clausulas pétreas), ela pode ser modificada, desde que se atinja o quorum e a maioria necessária. O próprio fato de nossa Constituição ter sido emendada 67 vezes é uma prova de que o sistema não é imutável. Além disso, é preciso que se compreenda que é justamente a necessidade de uma maioria qualificada para sua alteração que faz com que uma Constituição seja...uma Constituição. Basta isso para perceber que toda e qualquer proposta de modificação oblíqua poderia ser compreendida como “golpe branco”.

                Outro ponto de nossa atual estrutura duramente criticado pela Senadora é o fato de o STF, até o presente momento, ter dado provimento a 757 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (aquelas Ações que declaram que uma determinada lei é inconstitucional), fato que seria um sinal da baixa operacionalidade do sistema, decorrente da já mencionada extensão da Constituição. Com o devido respeito, contudo, não estaria aí, muito mais, um sinal da incapacidade dos legisladores? Será que os legisladores ao menos conhecem o texto constitucional? Ora, a inconstitucionalidade das leis não é culpa da Constituição, assim como o Código Civil não é o culpado por contratos que contenham cláusulas ilegais.

                Sabemos da necessidade de uma reforma política, tributária e previdenciária no Brasil. Não obstante, os caminhos para tais reformas não podem partir da exigência de uma nova Constituinte, a qual colocaria em risco as grandes conquistas da sociedade brasileira nos últimos 23 anos. Não se pode querer sempre tomar atalhos, evitando assim cumprir os pactos. E a Constituição nada mais é do que um pacto, um contrato dos vários setores da sociedade entre si. E como se sabe, “o que é combinado, não é caro”. A Constituição atual não autoriza o Congresso Nacional a transferir o poder de reforma a qualquer outra entidade. Além disso, juridicamente, uma nova Constituinte não está prevista na atual Constituição, o que faz com que a proposta seja, desde o início, inconstitucional. Igualmente inconstitucional seria a aprovação de uma PEC – Proposta de Emenda Constitucional que autorizasse o Congresso a delegar um poder que não detém.        Uma Assembléia Constituinte deve surgir por pressão das forças e movimentos de massa contra a ordem jurídica vigente. Outra forma (evidentemente ilegítima) é a dos Golpes de Estado, ostensivos e evidentes ou não. Constituição é, antes de tudo, fruto de uma repactuação, um “We, the People...”

                É preciso muito cuidado quando parcelas da sociedade assumem o discurso do terror e das ameaças. Isso costuma antecipar movimentos violentos. Assim se deu legitimidade para o Estado Novo, na primeira metade do século XX. Repetiu-se a jogada em março/abril de 1964, no período mais trágico da história recente. Sem a energia popular, assim como ocorreu no Brasil no início dos anos 80, qualquer tentativa de se instaurar uma Assembléia Constituinte será ilegítima e farsesca.

segunda-feira, setembro 26, 2011

O pré-sal, a União e a força centrífuga…

            Conforme tradição consolidada, todo mês de janeiro o Presidente dos Estados Unidos realiza um pronunciamento diante das duas casas do Congresso americano – representantes e senadores – reunidas em sessão conjunta. Sua fala versa sobre o que os americanos convencionaram chamar de “estado da União”. Trata-se de um ato de deferência do Poder Executivo ao Legislativo, inequivocamente seu “chefe” nos países democráticos. Porém, mais do que isso, o discurso sobre o estado da União americana deixa bem claro a todos que a federação é uma “união voluntária de Estados” que já foram independentes (as chamadas 13 colônias que se tornaram 13 países e se uniram em um só por questões de segurança, como fazer frente ao Império Britânico da época). Essa reunião de estados cria outro ente, distinto das partes, ao qual se convencionou chamar de União. Logo, a reunião dos estados existentes anteriormente deve ser benéfica para todos, para que se mantenha o interesse – do todo e das partes – em permanecerem no mesmo barco. E é a conjuntura disso que o presidente informa ao Congresso todo começo de ano.

            Pode-se dizer que os Estados Unidos foram a primeira nação inventada. Calcados em ideais iluministas, os pais fundadores norte-americanos elaboraram um conceito de nação que pretendia ter bases racionais e ser desprovido de famílias com poderes dinásticos. Isso fazia com que, ao negar a autoridade hereditária e a tradição como fundamento jurídico do poder político, eles se abrissem ao futuro, assumindo a responsabilidade da produção democrática do Direito e a legitimidade de sua unidade.

            Ao olharmos hoje para a Europa o que se vê é um continente frustrado por não ter conseguido se livrar do peso do seu passado, afinal foi justamente o fardo da história – e das tradições de rivalidades seculares entre vizinhos – que impediu anos atrás um aprofundamento da União Européia: tentaram ser como os americanos, mas a força centrífuga da tradição não deixou. E a União de verdade ficou só no plano monetário. Os países europeus acreditaram que a manutenção de suas independências seria mais benéfica do que uma eventual união. E de certa forma é isso o que se percebe quando o governo alemão faz cara feia ao ter que sustentar o peso da inconsistência fiscal e o baixo desenvolvimento econômico de países como Portugal e Grécia: “não pagarei pelo seu despreparo”, o que implica dizer, “não tenho responsabilidade pelos seus atos e seu destino”.

            Por aqui no Brasil, ao que tudo indica, vamos bem, obrigado. Somos um país forte e coeso. Falamos a mesma língua (o que não quer dizer nada, uma vez que a Europa tem quinze línguas e já tem moeda única, e nossos vizinhos sul-americanos falam espanhol e não se bicam muito, como Peru e Chile) e não temos grupos que reivindiquem soberania dentro do território nacional. Contudo, recentemente o tema da distribuição dos royalties do petróleo do pré-sal vem pondo na ordem do dia a discussão: qual o sacrifício que estamos dispostos a fazer para ficarmos todos juntinhos, sob a mesma bandeira e nos tornarmos cada vez mais unidos. Afinal, ainda que não pareça, somos uma Federação. Esquisita e centralizadora, mas, ainda assim, uma Federação. E somos um país continental que – segundo demonstra a história – apenas se manteve unido graças a Napoleão Bonaparte (que fez os reis portugueses saírem correndo da Europa em direção ao Rio), e por José Bonifácio de Andrada e Silva, que convenceu D. Pedro I a proclamar a independência e deixar o Brasil amarrado a um governo central forte, impedindo assim a fragmentação.

            Todos os interesses e peculiaridades regionais se mostram de forma nua e crua quando se discute quem se beneficiará com os lucros da exploração do petróleo (a tal força centrífuga...). A atual divisão dos royalties não considera os estados e municípios não produtores. Contudo, com a efetiva exploração do pré-sal, e os lucros exorbitantes previstos, as vantagens econômicas desses entes da federação poderiam criar desigualdades substanciais de riqueza e qualidade de vida entre os estados e as regiões de nosso país, o que já é, por si só, um elemento desagregador em total desacordo com os objetivos da República, apontados no artigo 3º, III, da Constituição Federal. Como se vê, o tema do equilíbrio da União – ou seja, o estado da nossa União – é pouco explorado e discutido.
            Que tal se a grande imprensa ensinasse a população a discutir o futuro do país?

quinta-feira, setembro 08, 2011

Tempos imprevisíveis.

                O homem é um animal ordenador: atribui significado àquilo que encontra em seu caminho. Cria explicações científicas e religiosas do mundo ao seu redor, fazendo com que a realidade que o circunda seja parte de uma ‘explicação’ do todo. Tal afirmação, já indiretamente apontada pelo filósofo inglês David Hume no século XVI, embora bastante genérica, serve para analisarmos essa capacidade magnífica do homem: observar os eventos históricos e deles extrair as possíveis relações de causa e efeito que lapidaram a longa aventura até aqui experimentada pela humanidade. Mas de qualquer forma, não se pode dizer que esse traço do ser humano sempre possa ser exercitado com sucesso. Isso porque relações de causa e efeito são facilmente perceptíveis apenas nas ciências duras, como a física newtoniana. Já os estudiosos das ciências humanas e sociais dificilmente conseguem valer-se de um experimento comprobatório de suas teorias, o que faz com que elas permaneçam como hipóteses.

                Quando na manhã de 11 de setembro de 2001 a humanidade percebeu que estava diante de algo até então inconcebível, todos ficamos paralisados. E isso justamente porque não conseguíamos compreender as conexões que haviam sido determinantes para tamanha atrocidade. E muito menos podíamos prever – por total falta de repertório – o que ocorreria daquele momento em diante: o caos se havia instalado no mundo e nada mais seria facilmente compreendido. As ilusórias relações de causa e efeito tinha ido para o bebeléu.

Com a proximidade do aniversário de 10 anos dos ataques à cidade de Nova Iorque a tendência natural é a de que façamos uma retrospectiva, não do atentado em si, mas dos seus efeitos, para o mundo e para os Estados Unidos, nos mais variados aspectos das relações humanas, sociais e políticas. Somente buscando compreender o mosaico de crises e tensões verificáveis no mundo contemporâneo é que poderemos inferir quais parcelas de nosso conturbado mundo atual podem ser atribuídas, direta ou indiretamente, aos homens que pilotaram aqueles aviões. Muitas vezes ignoramos, contudo, que um dos mais atrativos temas para a mídia global nos dias de hoje pode ter relação direta com a Al Qaeda: a economia.

Explico-me. Quando os especialistas em economia (dentre os quais pode-se citar Joseph Stiglitz, George Soros, entre outros, relatados pelo jornalista espanhol Antonio Navalón) olham em retrospectiva os acontecimentos imediatos após o 11 de setembro, muitos traçam uma conexão um tanto quanto inusitada, que envolve o grau de incerteza que pairou sobre Wall Street naquela semana. Entre 11 e 15 de setembro de 2001, a Bolsa de Valores de Nova Iorque permaneceu fechada por motivos óbvios: ninguém sabia se a estrutura do edifício, situado a poucas quadras das torres, agüentaria tão devastador impacto. Ocorre que tampouco se sabia como o próprio mercado financeiro reagiria – economicamente - àquela amostra grátis do Apocalipse. A solução proposta pelo Banco Central então foi a de baixar de maneira drástica a taxa de juros nos Estados Unidos. Com tal medida se pretendia, por um lado, mandar um sinal de esperança ao mercado e ao povo e, por outro, favorecer o investimento. Com essa atitude, provavelmente pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o custo do dinheiro, uma vez descontada a inflação, tinha um valor negativo. E aí começou a festa... Era melhor gastar dinheiro do que poupá-lo, acumulá-lo. Mas a gastança, que devia ter sido uma medida temporária de estímulo, acabou virando algo permanente. E tais taxas de juros induziram a tentação de emprestar dinheiro àqueles que no sistema de juros pré-11/09 jamais receberiam crédito em virtude de seu baixo poder aquisitivo e histórico de inadimplência. E assim a engrenagem foi se elaborando com manobras para uma aparente diluição do risco de tais empréstimos, criando a receita da bolha que estourou em 2008. Trata-se, como se percebe, de uma explicação inusitada e até simplória que ignora a história da prévia desregulamentação dos mercados, mas, ainda assim, é uma análise curiosa.

                É possível suspeitar que os terroristas imaginassem que os ataques teriam efeitos psicológicos na população americana e até na geopolítica internacional. É, contudo, muito improvável – senão realmente impossível – que os mentores dos atentados supusessem que suas conseqüências chegariam ao mercado financeiro e creditício internacional. Isso, em vez de refutar, acaba comprovando que a teoria do caos pode ser aplicada aos nossos tempos: nunca podemos medir, com total eficiência, a amplitude de conseqüências que terão nossas ações ou omissões. E junto com todas as certezas, evapora-se nossa pretensa ilusão matemática de causa e conseqüência. Sinal dos tempos!

domingo, julho 31, 2011

Mais lições de uma ilha gelada

Em meados de outubro do ano passado, quando nos aproximávamos do primeiro turno das eleições, comentei neste mesmo espaço o fato de a população da capital da Islândia, Reykjavík, ter elegido um palhaço para o cargo de prefeito. Tal notícia, naquele momento, era bastante curiosa, afinal apontava um paralelo ao fato de nosso atual deputado Tiririca estar então na liderança das pesquisas. Tiririca foi eleito, e a vida do país seguiu, bem ou mal, como tinha de ser. Ocorre que mesmo antes do pleito eleitoral brasileiro do ano passado, a população islandesa já havia sido notícia, e justamente por não ser muito ortodoxa em suas visões políticas. Explico: para quem não sabe, a Islândia foi o primeiro país a ter sua economia arruinada pela crise financeira de 2008 (a quem se interessar, recomendo o ótimo documentário “Trabalho interno”, vencedor do Oscar de 2011).

Quando chegou a hora de injetar dinheiro público nos bancos para manter a liquidez do sistema financeiro, o povo islandês chamou para si tal responsabilidade, exigindo para tanto um plebiscito. Resultado: o “não” ganhou. Os bancos quebraram e a população assumiu a decisão segundo a qual não seria admitido que bancos - que lucram de forma privada - socializassem seus prejuízos quando a corda lhes fosse lançada ao pescoço. Tais bancos islandeses foram obrigados a dar um calote e o dominó financeiro mundial começou a tombar, vindo dar como marolinha nestas paragens.

Na semana passada foi divulgada a última notícia da ilha das consoantes. A inusitada democracia islandesa está agora utilizando o Facebook para consultar seus cidadãos e recolher opiniões e sugestões para a nova Constituição do país, que está sendo escrita e que irá substituir a atualmente em vigor, redigida em 1944. Convocada após a quebra do país em 2008, a Assembléia Constituinte pretende dotar o país de uma Carta Política que efetivamente reflita o pensamento da população, e para tanto faz uso da internet, sempre exigindo que quem opine se identifique e argumente em defesa de seu ponto de vista.

Como se pode perceber, o exemplo islandês nos traz lições. Em primeiro lugar mostra que a idéia de democracia que hoje é exaltada no ocidente pode ser muito mais aprofundada: a ilusão de que somente apertar os botõezinhos da urna eletrônica de dois em dois anos pode mudar algo é doce. Esse sistema de democracia meramente representativa apenas troca os atores de uma peça teatral que já tem seu roteiro estabelecido, e cujos diretores obviamente não se apresentam às eleições. Num segundo plano, deixa claro que a internet, contrariamente ao que dizem muitos esquerdistas de plantão, não precisa ser necessariamente uma ferramenta de dominação e alienação das pessoas, especialmente dos jovens (muito embora possa sê-lo em uma sociedade incauta e ignorante).

A rede pode sim ser usada em benefício da discussão saudável e responsável. Mas ainda, e principalmente, a Islândia nos mostra, uma vez mais, todo o potencial de uma sociedade em que 99% da população é alfabetizada, e que se consolida como a menos desigual do mundo. Apesar dos pesares econômicos, mais de 2/3 da população da Islândia vai poder participar da redação da nova Constituição, já que esse é o percentual de pessoas com acesso 24 horas à internet.

E acima de tudo, uma população que deixa claro que, sem abrir mão do capitalismo e da meritocracia, é possível radicalizar a experiência democrática, colocando a economia no seu devido lugar.

quarta-feira, julho 20, 2011

6.999.999.999

No dia 31 de outubro de 2011 – segundo a maioria das previsões demográficas - nascerá um bebê, em algum lugar do mundo, que será o sétimo bilionésimo ser humano vivo no planeta. Não sabemos seu nome, nem mesmo o país em que nascerá, mas há 70% de probabilidade dessa criança vir ao mundo em um país pobre, e com baixos índices sociais e expectativa de vida. A chegada de nosso colega de número sete bilhões, contudo, em si não diz muito, sendo na verdade apenas um marco simbólico: não pensamos todos os dias de manhã que naquele mesmíssimo dia 218 mil pessoas a mais dormirão em suas casas (ocas, barracos, pontes e sarjetas) em todo o planeta (taxa de crescimento diário). O incremento quantitativo da população não é facilmente percebido pela humanidade, sendo constatável muito mais pela confusão na plataforma do metrô do que pelo aumento do preço do trigo. Nossos sistemas de organização (jurídico, político) não assimilam muito facilmente as conseqüências do aumento da população, muito embora as conseqüências sociais existam e tenham impacto relevante, ainda mais em países ou áreas pobres e com baixo desenvolvimento social.

Há, entretanto, um problema: falar sobre os problemas do crescimento vertiginoso da população mundial nos últimos tempos (de três bilhões em 1950 para sete bilhões em 2011) parece muitas vezes mais feio do que bater na própria mãe. É como se tocar nesse tema pudesse acordar certos monstros: legalização do aborto, controle da natalidade e até critérios econômicos para a reprodução responsável (algo como uma eugenia dos ricos). De fato, algumas coisas podem parecer terríveis, como condicionar o direito à reprodução ao preenchimento de certos critérios econômicos objetivos. Mas, em contrapartida, não podemos esquecer que considerar o matrimônio como condição para a procriação (como faz a Igreja de Roma) é algo muito semelhante.

Muito foram os homens que, ao longo dos séculos, manifestaram-se sobre os riscos da superpopulação. O mais famoso deles foi Malthus, um economista e pastor britânico que afirmava que a população sempre aumenta mais rápido do que a produção de alimentos, o que gera inevitavelmente fome em larga escala (pra não dizer uma considerável inflação no preço das commodities). Mas a subpopulação também já foi um problema econômico-filosófico: basta lembrarmos o fato de a “família” ter sido durante milênios a organização humana produtora de gêneros por excelência, tendo se tornado nos últimos quatro séculos cada vez mais um núcleo humano de consumo. Essa mudança radical no papel da família, além de modificar o ethos (espécie de síntese de costumes e valores de um determinado povo), também pode ser vista como uma das responsáveis pela gradual aceitação de casais homoafetivos como núcleos familiares, independentemente da capacidade reprodutiva.

Para exteriorizar minha opinião sobre o tema, valho-me da arte, pois acredito que não se possa ter uma opinião definitiva sobre o tema justamente pelo fato de a interpretação das conseqüências da expansão populacional não serem óbvias e dependerem do contexto histórico e tecnológico. Visitei no dia 05 de julho a exposição “6 bilhões de outros”no MASP (www.6milliardsdautres.org/index.php). O trabalho era composto por cerca de cinco mil entrevistas realizadas em 76 países diferentes, nas quais pessoas comuns respondiam a questões fundamentais para a humanidade como “qual sua primeira lembrança?”, “você se sente livre?” e “você tem alguma mensagem para os outros 6 bilhões de humanos?”. E podia-se ver ali uma infinidade de respostas, das mais singelas às mais profundamente elaboradas. Mas em todos os casos – do pescador brasileiro ao agricultor afegão, passando pelo executivo de Wall Street – os homens e mulheres que ali estavam eram únicos e maravilhosos. Isso mostrou para mim que, ao contrário das outras coisas, o ser humano não segue o caminho de uma moeda desvalorizada pela inflação: nós não perdemos nosso valor intrínseco pelo simples fato de haver muitos de nós. Essa constatação – a da divina singularidade do homem – acaba me impedindo de assumir posições radiais. Desta vez, eu fico em cima do muro, muito embora, racionalmente, sete bilhões seja um número absurdo.

sexta-feira, abril 08, 2011

A RACIONALIZAÇÃO DO IMPONDERÁVEL E O HUMANO ABOMINÁVEL

É bem provável que os corpos das crianças ainda estivessem quentes quando os primeiros especialistas em tragédias inimagináveis chegaram às redações das emissoras de TV. Vinham de todas as áreas e traziam argumentos científicos. De empecilho, apenas o fato de se contradizerem. Enquanto o Brasil via estarrecido o desespero das famílias na porta da escola, técnicos em segurança já indicavam a instalação de detectores de metal nos colégios e universidades de todo país. Ao mesmo tempo pedagogos e psicólogos apontavam o dedo para o bullying, explicando a origem do mal que viera à tona no início daquela manhã. Especialistas da fé buscavam isentar a explicação religiosa do mundo de qualquer culpa ao mesmo tempo em que psiquiatras traçavam o perfil psicótico do homem que não parecia humano.


Mas a sensação de impotência não arredava o pé. Homens da igreja viram o incompreensível realizado em nome da crença, enquanto os defensores da pena de morte apenas se calavam: a morte foi, segundo o sentimento de muitos, pouco para o assassino que deveria – este sim – ter sido mantido vivo para sofrer uma vingança eterna dos parentes, amigos e do país inteiro. Duro paradoxo este em que se percebe que uma vida de sofrimento eterno – até com águias lhe comendo o fígado “para todo o sempre” - seria punição pequena.


Percebeu-se então o abandono: abandono da razão, que não conseguia absorver e explicar o que ocorrera. Abandono de Deus, que, como se houvesse trocado de lado, era usado de argumento de purificação do mundo pelo louco-esquizofrênico-religioso. Abandono de nossos próprios poderes, uma vez que nem a maior de todas as penas poderia compensar ou vingar o ocorrido. Abandono até da humanidade, que se mostrara capaz de tamanha repugnância em relação à própria condição humana. A tragédia se fez assim: incompreensível, ininteligível, inaceitável, imperdoável, configurando como poucas vezes na história do país abençoado por Deus e bonito por natureza, o abominável enquanto elemento possível do bicho homem.


A resignação, em situações assim, se mostra a única e dolorosa saída. Uma postura altiva de luto como forma de expiação e compreensão de nosso próprio abandono, aqui, nesse planetinha. Afinal, pudemos notar que nossa ciência não preverá nem explicará a insanidade. Que nossa ilusão de segurança não nos protege de nós mesmos. Que nossos deuses, às vezes, nos viram as costas. Que nossas vinganças podem ser insuficientes. E que, principalmente, nossa mente pode ser a mais estarrecedora de todas as coisas no mundo. Vimos que o homem pode ser bicho e monstro, mesmo que desejemos dele a santidade.


A mais completa definição de tragédia.

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

O acrobata e a rede.

Muitos dos leitores destas linhas já devem ter certa vez sentido, num deslocamento simples ou em uma longa viagem, longe de seu lugar habitual, um sentimento bastante particular, ao mesmo tempo intrigante e fugaz, de total deslocamento e liberdade. Uma sensação de grata solidão, com a possibilidade ser mestre de si mesmo por algumas horas ou dias. Sem prestar contas à ninguém, sem telefone celular – irônica e deliberadamente desligado em nossos bolsos. Situação na qual o ar parece mais leve, assim como a alma. Tudo é possível, uma multiplicidade de caminhos se abrem à sua frente, dando azo à própria infinidade de desejos. Encontros, descobertas, insights, enquanto a paisagem parece assumir uma nova intensidade, jamais percebida. Pode-se assim perceber que a liberdade não é tão somente uma palavra vã, mas uma verdadeira sensação.


“Um viajante solitário torna-se um diabo”. É o que diz um provérbio muçulmano, que (1876-1972) utilizou como título de um romance que tem como tema a condição do homem ao viajar. Nesses viajantes é possível encontrar uma chama espiritual bastante curiosa que procura a independência de modo bastante rápido e até frágil: se a condição de errante se prolonga, o viajante que desvenda cidades como estrangeiro, que fica à superfície da agitação social, logo se cansará de si mesmo, prisioneiro de sua condição inútil. Sua inteligência que olha em seu redor não tardará a submergir, punindo a si mesmo por seu ócio estéril. Daí, a depressão e a crise não estarão longe. Em casos assim, não há outra solução que satisfazer-se até o fim...até o tédio. A fronteira entre a solidão fecunda e o isolamento melancólico é muito, mas muito tênue: para ser capaz de atravessar tais provações infernais, o viajante diabólico deve estar dotado de uma robusta constituição, de um sólido equilíbrio afetivo. Segundo o supracitado Montherlant, “Cada virtude cardeal de um homem é para ele um motivo de solidão. A inteligência isola. A independência isola. A franqueza isola. A coragem isola. A sabedoria isola.”


Como sair desse círculo, que transmuta a liberdade em desgraça? Para tanto é preciso que o homem seja capaz de ser, ao mesmo tempo, sem família e em família. Para empregar uma imagem, a família representa aqui o papel que a rede tem para o acrobata: se a amarração estiver muito frouxa, o risco em caso de queda é o de vazá-la e de se esborrachar no solo. É, portanto, indispensável poder contar com uma rede de segurança deveras resistente para que se possa lançar no vazio com coração leve, realizando manobras e saltos mortais perigosos. Na ausência de tal segurança, somente os candidatos ao suicídio abraçarão a profissão de acrobatas e os viajantes solitários acabarão seus dias como psicopatas. Reside aí a estranha lei psicológica: para atuar no mundo como um solitário destemido, o homem precisa estabelecer e manter laços muito fortes com aqueles que ama, sentindo permanentemente suas presenças a seu lado. Noutras palavras, é preciso ter uma família, biológica ou inventada. Paradoxalmente, parece ser essa a condição de possibilidade da liberdade vivenciável.