Um reino de incertezas acima de nossos pescoços.
Primeiramente gostaria de pedir sinceras desculpas a meus parcos leitores por minha ausência nestes dois anos durante os quais me mantive longe das letras e das opiniões. Os motivos, se é que sou capaz de compreendê-los, não são a razão de ser deste texto, o qual busca menos a autobiografia (se isso é possível) do que o restante de minha, até agora, curta obra argumentativa. Espero que este pedido seja aceito de bom grado.
O motivo crucial de meu retorno é um só: minha vaidade volta a aflorar-se, possibilitando minhas opiniões. Entendam-me que não espero que estas sejam acatadas e repetidas. Falo aqui apenas da coragem de expô-las, trazê-las a público, perdendo assim o medo do julgamento alheio e da negação totalitária. Mas, como deve sempre ser, um motivo mais especifico e direto me traz uma vez mais ao cyberspaco.
Esse dias passados, durante uma madrugada modorrenta e, graças ao universo, criativa, deparei-me com um programa madrugadoiro que lançava uma questão a seus tele-expectadores: “Que tipo de mente á e do pedófilo: Doentia ou Criminosa”.
A questão é, para aqueles que a levam a sério, extremamente espinhosa. Confesso que durante meus estudos jurídicos, em momentos de contestação muda da teoria da pena, fiz a mim mesmo diversas vezes a mesma questão. À época não pude respondê-la. Mais por incapacidade concatenante do que falta de tentativa. Afirmo que buscava entender essa diferença, que se mostra tão irrelevante na medicina comum e diária, mas extremamente desprovida de argumentos justos em uma análise mais acurada diante dos preceitos da filosofia do direito.
A dificuldade da questão calou minha mente por muito tempo. Anos depois, por intermédio da leitura de uma obra magnífica, a resposta surgiu (não por meus méritos, mas pela ajuda do autor da obra, ao qual aqui manifesto minha admiração e, por que não, devoção, por sua clareza de pensamento).
Não se pode, nem nunca se pode, falar de doenças psíquicas, crimes, perversões, anomalias de caráter, e tudo que a isso se liga, sem que houvesse um desenho muito nítido e desejado do que chamamos “homem normal”. A este o Direito convencionou chamar “sujeito”.
A história do sujeito se confunde com a história da filosofia, da psicologia, da antropologia, da biologia e de todas as formas de estudo cientifico que, hoje – e por enquanto – convencionou-se chamar ciências. A bem da verdade, tanto a historia do sujeito, quanto a historia de suas anomalias e doenças, bem como das instituições criadas para auferir e averiguar as deformações estão, inevitavelmente, ligadas. Isso porque, simplesmente, há e sempre houve uma noção do normal e do anormal em todas as sociedades do mundo. No caso específico dos criminosos ou doentios, ambos estão dentro de um conceito, qual seja, o do anormal.
Como todo estudante de colegial deveria saber, a conceituação social dentro do anormal ou normal tem, necessariamente duas vertentes (e aqui não se fala de predominância de uma ou outra, mas tão somente de suas ocorrências). Existem fatores endógenos e exógenos na construção da mentalidade humana. Esta questão, ainda mais espinhosa que a primeira, acaba por diluir-se ao assumirmos suas existência, cada uma relativa a seu campo, os quais não nos cabe definir ou delimitar.
Contudo, quando no fim da idade media (por um processo longo, demorado, com inúmeras nuances políticas e cheio de falsas afirmações opinativas) chegamos a um centro de construção do homem enquanto ser humano, um critério passa a regê-lo. A este critério damos o nome de vontade. Vejamos bem que a nossa noção de vontade, fundamental na distinção entre um criminoso e um doente, é extremamente recente na historia humana, e, até que se prove o contrário, desde Nietszche, marcha em alta velocidade para um fim trágico. Esta noção de vontade talvez seja herdada direta ou indiretamente dos próprios valores cristão.
A partir dessa definição do homem enquanto ser que pode expressar e explicar suas vontades, começa a se diluir a noção de que todo ato anormal deva ser combatido como pecado ou afronta indesculpável contra o todo coletivo. A vontade entra no centro do jogo. E é a partir daí que começamos a dividir a vontade consciente, controlável e formada por inúmeros processos que não se assemelham a moléstias físicas, das vontades incontroláveis, obsessivas e, necessariamente, impulsivas, às quais os agente – sujeito – não poderia dar combate.
Pois bem. Esse universo que coloca a vontade como ordenadora do mundo, infelizmente, já não mais existe. E alguns de seus algozes foram Freud, Nietzsche, Lacan, Iung, e todos aqueles, filósofos, psicólogos ou teóricos da mente humana que perceberam que, a vontade em si mesma, e ainda que compreendida como fiel da balança da condição humana, tem um processo de formação que, muitas vezes escapa aos domínios da mente do agente, o que, por destruição encadeada, elimina sua punibilidade.
Feito esse apanhado histórico, voltemos a pergunta do programa: O pedófilo é um criminoso ou um doente? Ainda que a pergunta seja em si mesma absurda, afinal fazem uma pergunta genérica que busca uma resposta genérica (o que a meu ver é preconceituoso, desprovido de rigor técnico, e pode levar às mesmas conclusões nefastas de toda generalização). A pergunta deveria ser: “fulano de tal, que cometeu atos de pedofilia, é um criminoso ou um doente?” Aí, se avaliaria a condição do agente no momento em que o praticava. Essa tarefa é extremamente problemática, pois deverão debruçar-se sobre o infrator da norma especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento humano, buscando, a partir da análise dos fatos e da mente infratora, dispor uma série de argumentos a fim de convencer o juiz (e a nós mesmos) de que aquele agente era, ou um criminoso, ou um doente. Trata-se, no fundo, não de uma busca da verdade (afinal, será que esta existe nesse caso??), mas de um exercício de convencimento, tanto do julgador, como de toda sociedade, numa tentativa, cada vez mais frustrante, de se buscar uma linha divisória entre a doença e a saúde e o bem e o mal.
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